quinta-feira, 4 de junho de 2015

A DOUTRINA DA IGUALDADE MORAL DOS COMBATENTES TERIA FUNDAMENTOS CORRETOS? 

Resumo da Posição de Jeff McMhan.

McMahan, Jeff. On the Moral Equality of Combatants. The Journal of Political Philosophy: Volume 14, Number 4, 2006, pp. 377-393. 




Jeff McMahan é professor de Ética e Filosofia Política da Rutgers Univesity e atualmente está na Oxford University como White's Professor of Moral Philosophy. Seu trabalho é referência no campo, sobretudo seu livro Killing in War (2009). Para saber mais sobre seu trabalho conferir seu website, link abaixo:

http://jeffersonmcmahan.com/

Neste texto ele apresenta uma detalhada refutação contra os principais argumentos levantados pela doutrina da igualdade moral dos combatentes - DIMC. Tal concepção representa a posição ortodoxa na Teoria da Guerra Justa sendo possível encontrar referências suas desde a literatura, como em Henrique V de Shakespeare, até a filosofia medieval de Aquino. Contemporaneamente seus principais lastros são a filosofia da guerra de Michael Walzer (cf. Guerras Justas e Injustas: uma argumentação moral com exemplos históricos) e o Direito Internacional Público.

Sinteticamente a DIMC consiste na formulação normativa segundo a qual na guerra combatentes de ambos os lados em litígio não agem de maneira errada (de forma não permitida) quando combatem entre si, por consequência, não são passíveis de culpa e/ou responsabilização. Combatentes só poderiam ser culpados por crimes contra inocentes, no caso, civis, pois estes não impõem ameaça não perdendo seus direitos à vida e liberdade. Dessa feita, independentemente da justiça ou não da mesma, os combatentes são liable to be killed (passíveis de serem mortos) porque impõem uma ameaça recíproca uns aos outros, não havendo porque falar, então, de culpabilidade ou responsabilidade de um dos lados.

Jeff McMahan se posiciona contra a DIMC porque entende que uma "pessoa não pode perder seu direito de ser atacado quando está agindo em sua defesa. As pessoas não perdem seus direitos morais ao defender-se justificadamente a si mesmas ou a inocentes contra um ataque injusto" (p. 379). As pessoas perdem seus direitos quando agem de forma injustificada impondo ameaça a vida de outras. Dessa feita, um combatente que tem ao seu lado a justa causa não perde seu direito de não ser morto, pelo contrário, o mantém. Mesmo que um combatente injusto limite seu ataque a outros combatentes há violação aos direitos morais dos combatentes justos, estes, ainda assim, são inocentes e não passíveis de serem mortos. McMahan então pergunta: como poderia ser permitido matar pessoas inocentes como meios para realizar fins injustos?

Acredito que a preocupação central de Jeff McMahan é atacar a ideia de que combatentes são apenas um instrumento da vontade política dos Estados. Os combatentes são indivíduos racionais e passíveis de deliberação, sendo fonte também de certificação moral. A vida deles está em jogo e eles não podem ser tratados como objetos para a consecução de fins políticos injustos. A DIMC então, compreendo a partir da leitura, seria errada porque:

(1) É incompatível com a realidade da guerra.

(2) Não leva em consideração o alcance dos efeitos da guerra sobre as comunidade ou pessoas como um todo, pois considera a permissibilidade de matar ou não em combate apenas entre aqueles que participam da guerra.

e, principalmente

(3) Trata os combatentes não como pessoas morais, mas como objetos para os fins da vontade política, seja ela justa ou não. 


Dadas essas questões iniciais pontuadas em outros trabalhos de Jeff McMahan (cf. Just Cause for War, in Ethics and International Affairs, 19 (2005), 1-21; The Ethics of Killing in War, in Ethics 114, (2004), 693-733.) vamos resumir tanto os principais argumentos que defendem a DIMC quanto os argumentos contrários levantados por ele. 

Em primeiro lugar o critério da ameaça não é suficiente para determinar a perda de direitos morais de não ser morto, uma vez que o common sense nos informa que nem em todos os casos em que eu ameaço alguém estou cometendo um ato injusto. Na autodefesa posso infligir uma ameaça para me proteger de um ataque injusto. O fato de ameaçar aquele que me ataca não faz com que eu perca meu direito de não ser morto, tampouco inocenta aqueles que me ameaçaram. Uma vez que o critério da ameaça é insuficiente, sustenta Jeff McMahan alguma argumentação adicional teria de ser oferecida para complementar e justificar a DIMC. Jeff McMahan parte para tais argumentos em detalhe.


I. Argumento do Consentimento. 

Levantado por Michael Walzer sustenta que:

"A realidade moral da guerra pode ser resumida da seguinte forma: quando soldados lutam livremente, escolhendo seus inimigos e planejando suas próprias batalhas, sua guerra não é seu crime. Nos dois casos, a conduta militar é regida por normas; mas no primeiro as normas baseiam-se na reciprocidade e consentimento; no segundo, numa servidão compartilhada." (Guerras Justas e Injustas. Martins Fontes, 2003, p. 62). 

Dois argumentos/modelos surgem:

(A) A analogia com a Luta de Box. 
A atividade dos combatentes é semelhante a uma luta de box. Assim como faz parte da profissão de boxeador consentir em ser batido ou sofrer dano, combatentes sabem que faz parte de sua profissão matar e ser morto, logo, ambos os lados dão seu consentimento para a possibilidade de matar e ser morto.

(R.A.) Refutação de Jeff McMahan. 

i. Refutação quanto à universalidade ou generalidade da Analogia da Luta de Box
Não se aplica a todos os casos. É falso supor que combatentes universalmente consentem em ser atacados, sobretudo quando se trata de uma agressão injusta contra sua pátria. Seria um absurdo supor que as pessoas consentem em ser mortas pelos invasores.

ii. Insuficiência do Consentimento. 
Consentimento não cria permissibilidade. Em muitos casos uma pessoa pode consentir ser morta, porém isso não criaria uma permissão para que ela fosse. Por exemplo, alguém pode dar seu consentimento para ser morto porque sua vida deixou de ter valor ou por alguma razão possui um desejo de morrer. Porém é preciso uma razão adicional para considerar que sua vida pode ser tirada. O caso do duelo é um exemplo, mesmo tendo consentido morrer não se encara a morte num duelo como moralmente correta. 

iii. A injustiça da causa contamina a ação do combatente injusto e não a valida.
Mesmo que o consentimento fosse dado pelos combatentes e que houvesse até mesmo boas razões, a ação dos combatentes injustos ainda assim não poderia ser transformada em uma ação justa. Ela ainda seria uma ação não permitida porque ela é um instrumento para a realização de um fim injusto. Portanto, o consentimento da outra parte (combatente justo) não teria o condão de validar a ação injusta do combatente que age sobe uma causa injusta. Isso porque o fim injusto perseguido pelo lado injusto afetará não apenas os combatentes justos, mas, sim, todos aqueles que participam ou não do combate. A sociedade como um todo. 

(B) Analogia com a luta de Gladiadores. 
A analogia com a luta de gladiadores sustenta que assim como gladiadores são forçados a lutar em função da imposição de que morrerão se não o fizerem, combatentes de ambos os lados são obrigados a lutar sob pena de sofrer sanções, sobretudo, perder a vida. Ambos os gladiadores entendem que apenas participando do combate é que poderão ter alguma chance de vida e liberdade, pois sua recusa a luta será fatal para eles. Dadas essas condições os gladiadores não se responsabilizam mutuamente pelas mortes, não sujam as suas mãos. A morte de cada um é responsabilidade daqueles que os determinam lutar, que lhes impõem a violência e guerra como alternativa. 

(R.B) Refutação de McMahan à Analogia do Gladiador.
O atual modus operandi de realizar a guerra não é compatível com o modelo dos gladiadores. Segundo Jeff McMahan a maioria dos combatentes não vão à guerra como consequência de uma coerção irresistível. Não seria verdade que a maioria dos combatentes que se recusasse à lutar seria morta pelos seus comandantes. Além de atacar a pretensão de universalidade do modelo do Gladiador, McMahan entende que esta analogia também padece da mesma crítica de alcance do modelo do lutador de box, a saber, que os erros de um combatente injusto não atingem apenas aos combatentes justos, mas, a todos aqueles a quem a guerra alcançar após ao seu fim, aquele em que os fins injustos prevalecerão. Os atos do combatente injusto não são errados apenas em função de um ataque indevido à um inocente, mas, também, porque servem de instrumento para um fim injusto. 

Conclusão de Jeff McMahan sobre a ideia de consentimento expressa em (A) e (B).
Ambas as explicações não são compatíveis com a realidade e a natureza da guerra. Pressupõem que os combatentes são livres para escolher combater ou que estes não nenhuma escolha que possam fazer.  Padece da falácia do tudo ou nada, pois considera ou que os combatentes estão livres para fazer toda e qualquer escolha ou que não possuem nenhuma liberdade visto serem escravos. Na verdade, compreende Jeff McMahan, a guerra é feita de níveis e degraus e nem sempre podemos afirmar que todos que nela combatem o fazem por livre escolha ou por total coerção. 

(C) Consentimento Hipotético.
Se não há um consentimento real, poderia haver um consentimento hipotético baseado no grau de indeterminação epistêmica da justiça da causa. Isto é, dado que seria impossível ou muito difícil um combatente poder saber claramente se sua guerra é justa ou injusta, pois ele não tem provas, ou lhes falta meio de conhecimento suficiente, um combatente iria preferir uma regra em que lhe permitisse agir livremente (matando ou não matando) do que uma regra que lhe restringisse a ação, pois ele poderia estar, hipoteticamente, entre aqueles que estão lutando uma causa injusta.

(RC) Refutação de Jeff McMahan.
Retoma um argumento central em sua posição: a injustiça da ação dos combatentes injustos não se deve apenas aos possíveis danos que ocasionarão aos combatentes injustos, mas, sim, ao fato de que são meio, instrumento, para a realização de um fim injusto. Mesmo o consentimento hipotético não é suficiente para tornar permissível as ações dos combatentes injustos dada a sua contaminação pela raiz com a injustiça da causa e, neste caso eu adiciono, pelo fato de que as consequências da guerra injusta não atingirão apenas aos combatentes, mas, a todos aqueles que irão sofrer os efeitos da vitória do lado injusto. 

Além desse ponto, Jeff McMahan também argumenta que seria mais racional aceitar um principio produzido por meio da deliberação racional que determinasse (a) a justiça da guerra e (b) proibisse o lado injusto de lutar, tornando-o passível de ser morto (liable to be killed). Aceitar um princípio assim seria mais racional porque produziria a possibilidade de diminuir o número de guerras e o número de mortes.  Além disso, cada combatente teria menos chance de ser tratado como mero instrumento. 


II. Argumento do Compromisso Institucional.

O Argumento do Compromisso Institucional foca no papel moral das Instituições Militares numa sociedade, assim: 

(a) As instituições militares são moralmente importantes porque fazem parte da defesa da vida e da liberdade da comunidade política.

(b) Para que elas tenham um bom funcionamento é preciso haver uma divisão moral do trabalho das Instituições Militares. Autoridades Política e ou Comandantes devem deliberar sobre a justiça ou não da atuação das Instituições Militares e Combatentes devem obedecer sem julgamentos, sob pena de que haja a paralisação do funcionamento das Instituições Militares. Apenas assim elas podem agir de maneira rápida e eficiente, pois a deliberação da ação de forma pulverizada, combatente por combatente, minaria a capacidade de ação das Instituições Militares.  

(c) Apenas operando nessa divisão moral do trabalho (autoridade deliberando e combatente abrindo mão da deliberação racional) é que as Instituições Militares poderiam realizar seus fins. Combatentes poderiam até ter razões individuais para não lutar, mas, abririam mão da sua deliberação porque as razões morais para manter a atuação da Instituições Militares seriam mais pesadas.

(d) Analogia com a justiça criminal. 
O argumento acima é reforçado quando se pensa na justiça criminal. O processo criminal é pensado para ter uma divisão moral do trabalho. Ao júri cabe decidir sobre a condenação ou não e aos sistema de execução penal cabe o papel apensa de cumprir as determinações do juri, a saber, atuar no cumprimento da pena. A divisão do trabalho e do ônus moral tem por objetivo produzir resultados justos distribuindo papéis e desconcentrando poder nas mãos daqueles que atuam na justiça criminal. O sistema é desenhado de forma que os resultados sejam o menos possíveis questionáveis ou personalíssimos. Dessa feita é tarefa da corte declarar a culpabilidade ou não de alguém e não dos agentes prisionais, estes, se atuassem com base em suas próprias deliberações poderiam pôr em risco todo o sistema. 

(R.C). Refutação ao Argumento do Compromisso Institucional

(i) Diferença entre justiça criminal e guerra quanto aos bens em jogo.
A analogia não alcança atos de guerra, pois estes determinam ou não permissibilidade de matar ou privar alguém de sua liberdade, em ambos os casos, o comprometimento institucional não é suficiente para garantir a permissibilidade da ação. Dificilmente concordaríamos que seria justificável executar uma pessoa que se sabe ser inocente, não se consideraria moralmente errado soltar tal pessoa. 

(ii) O compromisso institucional depende de instituições justas.
O argumento do compromisso moral sustenta que devemos abrir mão do nosso julgamento sobre justiça ou de que deixemos de promover um ato que consideramos justo para apoiar e dar capacidade de ação para instituições justas. Porém, não existe exigibilidade moral de obedecer à instituições injustas. Como exemplos: o Exército Nazista ou a Guarda Republicana do Iraque. Em ambos os casos tais instituições são desenhadas para fins injustos. Dado que o compromisso institucional depende do arranjo institucional ser justo ou não, o alcance do presente argumento restringe-se e não pode ser considerado universal. Portanto não pode fundamentar a DIMC, dado que esta sustenta que independentemente da justiça das autoridades, combatentes justos ou injustos não agem errados.

(iii) O compromisso institucional depende de histórico institucional de justiça.
Se os combatentes têm de abrir mão de seu julgamento moral em prol das instituições dado que estas podem ser justas, McMahan lembra que a possibilidade de justiça das instituições é dependente da história institucional justa das Instituições Militares. Nem sempre isto ocorre. 

(iv) Propósitos Morais e Funcionamento das Instituições Militares não seriam afetados pela recusa dos combatentes em lutar uma guerra injusta. 
McMahan questiona se o funcionamento e os propósitos morais das Instituições Militares seriam ameaçados pela quebra da obediência automática à cadeia de comando. A história das guerras tem mostrado a capacidade de mobilização das autoridades políticas, sendo a insubordinação ou motins relativamente raros, especialmente quando motivado por preocupações morais. Mesmo que combatentes fossem incentivados à deliberar racionalmente não haveria grandes riscos ao funcionamento e propósitos morais das Instituições Militares. Em caso de guerras justas de defesa o risco ainda seria menor. 

(v) Recusa em lutar guerras injustas não prejudica o funcionamento das Instituições Militares e seus Propósitos morais, mas, fortalece as mesmas.
Jeff McMahan defende com o exemplo de dois casos do Estado de Israel em 1982 que a recusa de participar de guerras injustas fortalece as instituições por conta do debate democrático que ela gera. 

(vi) Uma guerra injusta pode causar mais danos às Instituições Militares do que a recusa dos combatentes em combater uma guerra injusta. 
Jeff McMahan cita o exemplo de que desde o início da Guerra do Iraque a Acadêmia Militar de West Point tem perdido alunos. As bases motivacionais capazes de mobilizar a captação e manutenção de quadros para as Instituições Militares são fortemente afetadas por uma guerra injusta levando a população de uma comunidade política a não apoiar. 

(vii) Diferenças entre a Justiça Criminal e a Justiça da Guerra.
Confiamos na justiça criminal porque ela possui um "procedimento imparcial" baseado na "presunção de inocência"que foi desenhado para ser epistemicamente mais confiável do que o julgamento pessoal. Todavia, diz Jeff McMahan, tal procedimento não existe quando temos de avaliar a decisão de ir à guerra. "Não existem mecanismos institucionais ou procedurais capazes de assegurar as considerações morais ou até mesmo de levar em consideração as restrições morais na hora de iniciar uma guerra".

Aqui um ponto interessante para quem estuda cosmopolitismo institucionalista. Jeff McMahan entende que o argumento do compromisso institucional teria uma força maior se existissem procedimentos institucionais governando o uso da força. Se existissem instituições e procedimentos poderíamos criar uma base de confiança em que a decisão de ir à guerra seria moralmente acertada. 


III. A justificação subjetiva ou Argumento Epistemológico da DIMC.

Um dos fundamentos da DIMC é a alegação de que seria muito difícil ao combatente comum determinar se a guerra que ele é ordenado a lutar é justa ou injusta. Ele não tem condições de avaliar os fatos, pois seus meios de prova são escassos e ainda pode vir a sofrer manipulação do seu julgamento pelas autoridades políticas. O combatente não tem conhecimento de filosofia moral, têm pouca oportunidade de tempo para fazer reflexões, sendo assim, se suas autoridades legitimamente constituídas o ordenarem ir à guerra, diz Jeff McMahan, seria perfeitamente plausível para ele declinar de seu julgamento e confiar nos seus comandantes e autoridades políticas.

As dificuldades de julgamento moral dos combatentes acima relatadas acabam também por nutrir a DIMC. Jeff McMahan então nos mostra o argumento prol DIMC. Ele é composto por duas premissas:

(1) Premissa da explicação subjetiva da permissibilidade da ação.

(1.1) Pode se agir permissivamente mesmo se algumas das crenças que se tem como relevante para o que se deve fazer sejam falsas, porém razoáveis ou epistemicamente justificáveis pelas circunstâncias

e

(1.2) se age de forma que seria objetivamente justificável se tais crenças fossem verdadeiras.

(2) Premissa da aceitabilidade razoável da decisão das autoridades. 
Dado (1) é razoável para os combatentes declinar de seu julgamento em favor das autoridades políticas de sua sociedade e aceitar que a guerra que travam é justa. Isto seria justo seja a guerra justa ou não de fato.

Contra-argumento de Jeff McMahan.

Jeff McMahan inicia sua refutação defendendo que o argumento epistêmico ou a explicação subjetiva da ação pode ser compreendida apenas em um sentido fraco da justificação da ação. Tanto na literatura jurídica quanto moral há uma distinção entre justificação e escusa. 

Para alguns,  justificação implica mais do que mera permissão. Pela alegação de que alguém está justificado a agir entende-se que um agente está justificado em realizar determinada ação, tendo o direito de agir de determinada maneira, o que implica, por sua vez, que outros tem o dever de não impedir a pessoa de agir da maneira que se considera justificável.

Jeff McMahan considera que se a explicação subjetiva da ação for compreendida dessa maneira ela será demasiadamente implausível. Nessa visão uma crença razoável mas errada pode ser fonte de um direito. Mas ao contrário, Jeff McMahan está considerando que o princípio previsto no argumento epistêmico da ação implica que uma crença razoável porém falsa pode tornar a ação permissível para um agente de outra forma estaria errado, mas não pode lhe dar o direito de agir dessa maneira. 

Aqui entendo o seguinte: um agente que age mediante erro, devido à falta de provas, dificuldades de compreensão ou manipulação tem a permissão para agir dessa forma, pois acredita estar agindo certo dadas as circunstâncias em que se encontra. Porém, isso não lhe dá o direito de agir dessa forma, pois, se um agente que sabe da falsidade da crença da pessoa que está agindo tem o dever de lhe impedir para que não cometa o erro. Dado que a compreensão de direito que Jeff McMahan utiliza é a de que tenho o direito de agir de maneira (x) sendo proibido para os demais impedir que realize (x) é estabelecida uma distinção entre direito e permissão. Na permissibilidade está aberta a possibilidade de erro do Agente-A que realiza (x) e está autorizado aos demais Agentes-N, se verificado o erro, impedir o Agente-A de realizar (x). Porém, quando o Agente-A tem o direito, os demais Agentes-N tem o dever de não impedir o Agente-A de realizar(X).

O problema para Jeff McMahan é que se explicação subjetiva da permissibilidade da ação for correta, alguns resultados injustos terão de ser aceitos como permitidos. Por exemplo, o caso de uma criança sem educação que razoavelmente declina seu julgamento aos seus pais e autoridades políticas pode se tornar um agente terrorista e matar pessoas inocentes, uma vez que não está em condições razoáveis de avaliar suas ações. Outro exemplo que ele utiliza é o de que se for razoável declinar o julgamento para as autoridades políticas ou comandantes nada impede um combatente em guerra matar um grupo de crianças.

A disputa de Jeff McMahan aqui parece ser sobre os limites e extensão da outorga do julgamento para terceiros. Parece que ele quer nos dizer que se aceitamos que uma pessoa racional decline seus julgamentos morais todas as vezes em que for razoável ou funcional um terceiro fazê-los por nós o que estamos abrindo é a possibilidade de que todas as ações se tornem permissíveis e ou impedindo de realizar de qualquer julgamento moral sobre as ações do agente que declina sua faculdade de julgar.

No entanto, Jeff McMahan considera que a razão para que o argumento epistêmico seja errado é a falsidade da segunda premissa. Para ele algumas vezes é razoável para um combatente injusto acreditar que sua guerra é justa, outras vezes não. A DIMC não sustenta que a participação numa guerra justa pode ser considerada permitida desde que haja crenças razoáveis de que guerra ora travada é justa. Ao contrário, entende Jeff McMahan, a DIMC sustenta que os combatentes não são responsáveis pela guerra, seja ela justa ou não, não cometendo erros morais quando combatem sob uma causa injusta mesmo que tenham motivos razoáveis para não agir dessa forma.

O argumento epistêmico poderia ainda sustentar a DIMC numa versão menos exigente. Uma que dissesse que dado que não sabemos como distinguir entre

(a) combatentes injustos que razoavelmente acreditam que sua guerra é justa;
(b) aqueles que sabem que sua guerra é injusta; e
(c) aqueles que acreditam que ela é injusta mas irrazoável,

Na prática, sustentaria-se nessa posição, nós deveríamos sempre agir sob a presunção de que combatentes injustos agem permissivelmente. Trata-se de uma afirmação mais fraca e pragmática da DIMC.

Para McMahan este argumento mais fraco também é errado. Segundo argumenta pode até ser verdade que a maioria dos combatentes injustos acreditem que sua guerra é justa, mas não que acreditem que sua guerra é razoável. Mas, novamente a questão dos elementos que se encontram disponíveis e acessíveis ao combatente comum entram em cena, sendo muito difícil determinar quando existem recursos suficientes capazes de informar o julgamento moral. Jeff McMahan considera que até mesmo em democracias consolidadas como os EUA é difícil confiar plenamente nos governos.


IV. Desobediência Simétrica?

Nessa parte Jeff McMahan responde a seguinte pergunta: se combatentes devem firmar seu posicionamento moral e não participar de guerras injustas, o que lhes impediria de fazer o contrário, ou seja, deliberar e ir à guerra quando considerasse que a mesma é justa é não está sendo travada?

Segundo Jeff McMahan há pelo menos um bom motivo para considerar que a recíproca não é verdadeira: enquanto um indivíduo pode recusar sozinho ir à guerra ele não pode iniciar sozinho uma guerra, pois esta é um empreendimento coletivo. Mesmo que um grupo de indivíduos possa se reunir e decidir ir à guerra a decisão de travá-la não pertence apenas um sujeito, mas à autoridade legítima. A subordinação dos militares ao controle civil é parte da exigência do princípio a autoridade legítima.

Em que pese a não permissão de uma guerra sem a devida autorização não ser uma questão de princípios fundamentais, Jeff McMahan considera que existem razões pragmáticas para não permitir uma guerra sem o devido aceite da autoridade legítima. As consequências de uma guerra são severas ao ponto de que deve haver um procedimento institucional devidamente desenhado para assegurar de que não se decidirá por ela sem a devida justificação.

No entanto Jeff McMahan não descarta a possibilidade de que haveria legitimidade em grupos reagindo e indo à guerra quando seus governos ou autoridades legitimamente constituídas ficam paralisadas em procedimentos e não conseguem tomar decisões adequadas diante casos urgentes. Basta pensar em casos como o massacre étnico na Sérvia em 1992 ou no genocídio em Ruanda em 1994.


V. Objeção de Consciência.

Aqui entra a parte que considero principal no texto de Jeff McMahan. A principal implicação prática de seus argumentos reside em considerar os combatentes como pessoas morais capazes de deliberarem e decidirem moralmente tornando a guerra passível de consideração moral sobretudo por parte daqueles que atuam diretamente em suas mazelas. Os combatentes nessa visão revisionista do jus in bellum não serão mais tratados como mero meio, objeto para ação política

Para Jeff McMahan os combatentes devem ser encorajados a fazer a devida reflexão moral. Isso pode produzir uma nova cultura e moralidade da guerra uma vez que os combatentes passam a ser considerados como sujeitos capazes de exercer autonomia. Abandonando a confortável ficção da igualdade moral dos combatentes entrando em suas mãos também a responsabilidade pela guerra.

As combatentes, dado o risco maior de se tornarem objeto numa guerra injusta, cabe o dever de buscar e procurar o máximo de informações possíveis para entender a moralidade do conflito que possa lhes atingir.

Para a sociedade civil cabe o dever de informar e contribuir para a formação de seus combatentes para que estes possam adquirir capacidades de julgar e entender os conflitos morais, servindo assim melhor os interesses da comunidade política. Para Jeff McMahan essa proposta se concretiza sobretudo ao criar a possibilidade de objeções de consciência que não sejam demasiadamente custosas. Uma legislação e instauração de devidos processos legais poderia evitar os abusos do apelo à objeção de consciência ao mesmo tempo que criaria uma cultura pública de julgamento da guerra entre os combatentes. 

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Notas sobre a possibilidade de uma Teoria Crítica da Moralidade da Guerra.

Algumas notas sobre a possibilidade de uma abordagem Teórico-Crítica da Teoria da Guerra Justa a partir do texto de Seth Lazar e Laura Valentini Proxy Battles in Ethics of War (draft, 30 September 2014).

* (As considerações abaixo são apenas reflexões que divido com os colegas. Como notas podem não conter toda uma explicação de todos os pontos do texto lido, bem como podem não conter todos os elementos necessários para concretizar o programa proposto de uma abordagem teórico crítica da TGJ. Divido com os colegas tanto para fomentar o debate quanto para buscar sugestões, comentários e promover o dabate da moralidade da guerra no Brasil.)


Didático, informativo e claro. Seth Lazar e Laura Valentini formatam o frame em que a Teoria da Geurra Justa deve se mover se quiser superar os impasses do seu atual estágio, segundo ele, de uma "proxy battle". Escolhem como ponto controverso e fio condutor duas de três questões fundamentais para a TGJ que se ligam ao jus in bellum (direito da guerra): a igualdade moral entre combatentes e a imunidade dos não combatentes. Esses dois pontos dividem abordagens "Ortodoxas" que entendem que os combatentes não são moralmente iguais, não podendo ser atribuída responsabilidade a um dos lados em combate, sendo lícito, para ambos lados, matar. Os combatentes teriam permissão para matar independentemente ou não da justiça de sua causa. O mais proeminente defensor desssa possição é Michal Walzer.

Do outro lado estão as abordagens "Revisionistas" que entende ser moralmente falsa a igualdade moral dos combatentes. A moralidade do combate depende da justiça da guerra sendo moralmente falso pensar que ambos os lados estão igualmente permitidos matar, pois um deles pode travar a guerra de maneira injusta. A questão da imunidade dos não combatentes segue o mesmo raciocínio. Para a abordagem Ortodoxa, o não combatente não pode ser morto porque não é responsável pela guerra, seja ela justa ou injusta, não sendo partícipe não renunciou ao seu direito à vida. Já para as abordagens Revisionistas, não se poderia falar, pelo menos, de uma absoluta inviolabilidade do não combatente, pois é plausível pensar que existam guerras em que civis não combatentes contribuem para guerra de maneira ativa e influente. Sendo um dos lados justos e outro não, em tese, o civil não combatente que contribui para uma causa injusta poderia ser responsável pela ação injusta na gurra, sendo, assim, liable to be killed

Para Seth Lazar e Laura Vallentini os dois lados se encontram em uma proxy battle. Pesquisando o termo proxy battle encontrei a seguinte explicação. Imagine que existe uma empresa e que seus acionistas querem que ela tome posição x ou y, mas, seus administradores, gerentes, executivos, etc., não desejam a mesma coisa. A proxy battle passa a ser uma série de rodadas adversariais em que os acionistas irão tentar fazer com que a empresa que eles controlam, mas não administram, passe a atuar em conformidade com a sua vontade e não com a dos executivos. No caso da TGJ o que temos é um cenário em que dois grupos tentam controlar os rumos da TGJ. Cada um com seus startpoints, mas sem dialogar. Como essa descrição da TGJ entendo que Seth Lazar e Laura Valentini querem: i. ao mesmo tempo explicitar quais são as divergências de fundo que levam à proxy battle  quanto ii. colocar as partes na mesa para dialogar e resolver os problemas de fundo da TGJ que infuenciam nas divergências sobre os princípios acima. Seth Lazar e Laura Valentini estão preocupados, entendo, com os rumos cognitivos da TGJ. Se o campo quiser avançar as divergências de fundo precisam ser explicitadas de forma que um novo round de estudos se estabeleça. Nesse aspecto, Seth Lazar e Laura Valentini estariam nos dizendo que o "esgotamento" da TGJ no debate atual estaria fadado à esterilidade a menos que ela passe a considerar os start points de seus propositores?

Duas questões então se tornam centrais. A atual discordância entre Ortodoxos and Revisionistas tem uma (A) orígem primeiro no debate ainda não explicitado sobre o local (locus, site) das obrigações morais que envolvem a guerra, aqui, sobretudo, o jus in bellum. O Segundo debate (B) reside em decidir quais são os fatos morais relevantes que irão informar a teoria moral de forma que ela possa ser passível de compliance. Nesse segundo caso, o problema é de feasibility. Seja a abordagem Ortdoxa||Institucionalista, seja a abordagem Revisionista||Interacional ambas têm de se defrontar sobre como descrever melhor os fatos que são relavantes para a elaboração da teoria bem como modeladores da formatação de princípios morais.

Nesses pólos, o direito da guerra acaba ganhando destaque, pois é preciso decidir se devemos total obediência ao direito humanitáro da guerra (Ortodoxo||Instituionalista) ou se devemos primeiro obedecer à moralidade da guerra, em detrimento do direito (Revisionista||Interacional). Ambas as posições enfrentam desafios de ordem teórica e prática. Seth Lazar e Laura Valentini nesse artigo não pretendem dar uma resposta a todos estes pontos, sugerindo apenas quanto à questão da feasibilty que se empreguem os instrumentos da Teoria da Decisão Racional. 

O texto nos coloca a mensagem de que a Ética da Guerra Justa não pode mais desconsiderar questões de "segunda-ordem". Porém, se Seth Lazar e Laura Valentini pontuaram bem a questão sobre como o locus (site) das obrigações morais influencia na determinação da interpretação dos princípios da guerra justa, entendo que ainda deveríamos dar um passo mais atrás nos seguintes níveis:

(A) O local das obrigações morais (Instituições ou Interações) depende também da concepção de Justiça que se tenha. Por isso as teorias da justiça contemporâneas deveriam ser levadas em consideração na elaboração||interpretação||aplicação dos princípios da guerra justa.

(B) Não apenas a definição do locus deveria ser levado em conta, mas, como teórico crítico, entendo que os dois campos deveriam ser reconciliados reconstrutivamente de forma a dar tratamento crítico à Guerra Justa. Alguns pontos deveriam ser levados em consideração nesse aspecto: 

B.1 Tanto Ortodoxos||Revisionistas ainda trabalham tendo por foco o individualismo metodológico, limitando-se a definir a moralidade da guerra por meio da pergunta sobre como se deve dar a obediência ao direito ou à moral apenas no aspecto individual. Nesse sentido a moralidade da guerra, sua concepção de agency, responsibility, liability, etc., desconsidera que a formação de laços morais é intersubjetiva e socialmente mediada. Acredito que em Walzer isto não seja plenamente justo, pois a primeira parte de Guerras Justas e Injustas (1977) é toda dedicada para mapear a moralidade da guerra inscrita nos conteúdos semânticos das interações sociais e explicitadas sobretudo nas <reflexão||julgamento> sobre a  guerra, na esfera pública e na crítica moral. Porém, Walzer deixou estes elementos em sua teoria, se engajando analiticamente com seu horizonte de debate anglofônico;  
B.2. Se quisermos elaborar uma TGJ que apreende moralmente o fenômeno da guerra, precisamos considerar nas questões de responsabilidade, certas injusticas que não são apenas individualist-centred, mas estructural-centred. A permissibilidade da guerra, a conduta na guerra e as questões pós-guerra não deveriam desconsiderar elementos estruturais da GeoPolítica e da Economia Capitalista. Por isso precisamos religar os elementos da moralidade interna da TGJ com as questões sociais preeminentes causadoras de injustica social. 

B.3. Se a violência e o uso da força são, pelo menos do ponto de vista analítico, em alguns casos permissíveis, como tornar essa pemissibilidade do uso da forca potencialmente emancipatória. Nesse aspecto, como estudante da Teoria Crítica, sei que há uma grande dificuldade. Qual seria o parâmetro emancipatório que melhor poderia reconciliar as demandas morais da TGJ com as injusticas sociais? Liberdade Comunicativa, Reconhecimento, Justificação?

domingo, 6 de julho de 2014

domingo, 15 de junho de 2014

O argumento de Michael Walzer sobre Intervenções humanitárias

(I) Discutir Intervenções Humanitárias

Quando falamos sobre intervenções humanitárias, admitindo a possibilidade delas serem consideradas justas, basicamente formulamos as seguintes perguntas:

(1) O que é uma intervenção humanitária?
(2) Quais devem ser critérios que autorizam a intervenção humanitária?
(3) Quem ou quais devem ser os agentes envolvidos na intervenção humanitária?
(4) Quais devem ser os objetivos da intervenção humanitária?
(5) Qual ou quais devem ser os procedimentos durante uma intervenção humanitária?
(6) Como se deve encerrar uma intervenção humanitária?

As perguntas acima não tem a pretensão de encerrar os questionamentos normativos sobre o tema. Quero apenas utilizá-las como forma estruturante e didática de apresentação das posições teóricas contemporâneas sobre o tema.


A primeira que apresentarei é a posição de Michael Walzer.

Sua teoria e argumentos podem ser encontrados em diversos textos, mas, basicamente, utilizarei apenas dois dadas as perguntas acimas. O primeiro é o clássico Guerras Justas e Injustas (1977) - (GJI) e o segundo é The Argument about Humanitarian Intervention - (AHI). Mesmo que tenha ocorrido acréscimos ou revisões, esses dois textos contém o núcleo da argumentação de Michael Walzer.

As Intervenções humanitárias constituem uma modalidade específica de guerra e estão dentro do quadro mais amplo da teoria de Walzer sobre guerras justas e injustas. Não vou reconstruir todos os elementos da teoria de Walzer, mas, um breve resumo dela é necessário para entender o caso das Intervenções humanitárias.

Walzer argumenta que no mundo político os indivíduos se associam por meios de processos espontâneos de socialização por meio dos quais são compartilhado valores, objetivos, desejos e vontades. Nesses processos de socialização os indivíduos vão formando suas subjetividades ao mesmo tempo em que a comunidade passa a ser o espaço coletivo em que podem ser afirmados, construídos e reconstruídos, os acordos sobre que bases institucionais, políticas, culturais os indivíduos Irão exercer seus dois direitos básicos e fundamentais: a. direito à vida e b. direito à liberdade.

No domínio do mundo político esses dois direitos passam a ser concretizados na comunidade social que estabelece o Estado como o instrumento de representação política dos valores culturais, históricos e sociais da comunidade. O Estado mantém a fidelidade política dos seus cidadãos e comunidade à medida em que representa os interesses vitais destes. A obediência é mantida à medida em que a agência estatal mantém esses laços de representatividade.

Quando a imagem é ampliada e se passa a olhar para as relações internacionais, o direito à liberdade e vida se traduzem nos direitos à independência política e integridade territorial respectivamente. A independência política tem sua face interna e externa. Internamente ela é o direito que cada comunidade tem de estabelecer suas próprias organizações políticas em conformidade com a sua própria vontade. Externamente a independência política é o direito que cada comunidade tem de estabelecer seus padrões, direitos e organizações políticas sem a interferência externa de qualquer outra comunidade. 

Já o direito á vida é traduzido no direito à integridade territorial, pois o espaço físico em que as relações de compartilhamento cultural são desenvolvidos representam para Walzer um elemento vital para existência da comunidades. Independência política e integridade territorial são direitos que possibilitam a própria existência da comunidade. Uma vez violados poem em risco a vida da comunidade.

Na sociedade internacional, local em que as comunidades se encontram e se relacionam para Walzer, está estruturado um sistema em que esses dois princípios estabelecem a igualdade entre os Estados. Ameaça-los é ameaçar a paz e estabilidade internacional. Nesse sentido, o princípio da não intervenção, o principio da proibição das guerras de agressão, dentre outros são vitais para a existência da comunidades.

Por último, é importante dizer, quando há uma agressão a alguns dos direitos e princípios acima, a comunidade tem o direito de resistir contra a agressão. É permissível que ela trave guerra contra o agressor, é justo que ela utilize a forca para defender seus interesses vitais.  

Claro que esta é uma hiper-simplificação. Walzer não pode ser confundido com alguma espécie de visão substancialista de comunidade que se afirma na arena internacional sem restrição alguma quando quer defender seus interesses. Não cabe aqui nesse post, mas é preciso alertar o leitor. Para mim, Walzer é um liberal com fortes matizes republicanas, com uma teoria deontológica sobre a Guerra, cuja fonte de normas é a Opinião Publica, os Sentimentos Morais, a Critica Moral e o Direito. Todas essas são afirmações fortes que demandariam um post por si só. Mas, qualquer compreensão que não leve em conta esses  elementos irá ser obscura e míope.

Apenas para reafirmar que Walzer é um membro da tradição liberal devo afirmar ao leitor que: (a) Walzer se apoia fortemente em John Stuart Mill quanto á que frame político deve orientar as interações na sociedade internacional; (b) Walzer é um defensor dos direitos individuais como núcleo estruturante de sua teoria; (c) Walzer é comprometido com o pluralismo de visões de mundo.


(II) Respondendo às questões

Vou aos pontos acima listados.

(a) Para Walzer Intervenções humanitárias são: 

(a.1) intervenção porque se trata de uma ação que, aparentemente, o principio da não intervenção será violado contrariando, assim, aparentemente, o direito que cada comunidade tem de se autodeterminar; 

(a.2) humanitária porque o objetivo dessa ação aparentemente contrária ao direito da comunidade que sofre a intervenção tem objetivos que são ligados aos sujeitos, pessoas, indivíduos das comunidades e não a disputa por poder ou riqueza. Então, posso dizer, provisoriamente, que estamos tratando de um ação que ocorre em contrariedade ao principio da não intervenção tendo como objetivos alguma especie de interesse nos indivíduos que pertence à comunidade que sofre a intervenção. Também posso dizer, que aqui estamos tratando de uma ação militar concreta, real que irá, em algum sentido, contrariar os direitos políticos à autodeterminação ou integridade territorial.


(b) Quando as intervenções podem ocorrer?

As intervenções podem ocorrer todas as vezes em que um regime rompe com os laços políticos com a comunidade e a ataca de maneira tao gravosa que: (b.1) poe a existência da comunidade em risco;  (b.2) a torna incapaz de exercer seu direito de resistência e (b3) "choca" a consciência moral dos seus vizinhos.

Em Walzer quando as autoridades ameaçam a vida de sua comunidade ou de minorias, dissidências politicas, etc., tais autoridades estão ameaçando o direito à vida e a liberdade que toda comunidade e individuo possui. A sociedade internacional não pode aceitar tal violação, por isso, deve intervir. A necessidade de intervenção se torna evidente quando a comunidade ameaçada não consegue mais se autodefender, seu direito de resistência está bloqueado, assim como quando uma comunidade se solidariza com a agressão gravosa ao ponto de mobilizar seus recursos militares para agir.  

Na teoria da agressão desenhada em Guerras Justas e Injustas não estava desenvolvido o cenário pós-guerra fria, portanto Walzer não desenvolveu uma argumentação levando em conta a pergunta se as Intervenções poderiam ser executadas quando tais violações a esses direitos acima (direitos morais) poderiam ser desferidas quando violações aos direitos humanos, previstos na DUDH-1948 e tratados posteriores tivesse ocorrido. 

Foi no texto O Argumento sobre intervenções humanitárias que Walzer reconfirmou a posição da Teoria da Agressão no vocabulário da discussão sobre quais direitos humanos autorizariam ou não a intervenção. Walzer defendeu que apenas o direito à vida e à liberdade numa expressão minimalista poderiam ser causa para a intervenção. Isto é apenas quando a vida e as liberdades básicas das comunidades estivesse em risco é que poderia ser autorizada a intervenção. Essa ameaça se caracteriza pelo genocídio, assassinato, expulsão, massacre, deportação, maus-tratos, impor condições degradantes de vida, etc. 

No debate sobre quais direitos humanos autorizariam as Intervenções, apenas uma lista minimalista estruturada basicamente nos direitos à vida é que poderiam ser causa para a intervenção. Mas, por que uma lista minimalista? Em primeiro lugar, argumenta Walzer, a lista minimalista é a que é capaz de ser amplamente aceita pela sociedade internacional sem divergências ou oposições. Trata-se de um núcleo minimo que não poderia ser questionado. Aparentemente poderia ser dito que tal razão é meramente pragmática, mas ela tem seu fundo normativo, pois os direitos de proteção à vida são aqueles que passam pelo teste da aceitabilidade universal. Numa sociedade internacional tao dividida culturalmente, a proteção à vida é o elemento comum que todas as culturas são capazes de aceitar racionalmente.   

Um segundo argumento normativo é que que a versão minimalista protege a sociedade internacional contra a possibilidade de Intervenções que violassem os valores e culturas comuns dos seus Estados membros em nome de direitos humanos que estão ligados muito mais à uma determinada cultura politica. 

Walzer entende, seguindo John Stuart Mill, que autodeterminação não pode ser confundida com liberdade política. Para Walzer e Mill, um povo pode ser autodeterminado nem necessariamente possuir internamente uma organização política liberal ou democrática.  Cada comunidade tem o direito de buscar sua própria configuração politica interna e qualquer interferência nesse direito seria uma violação da autodeterminação.
Walzer, se apoiando em Mill, defende que os Estados da sociedade internacional não podem impor uns aos outros uma determinada configuração política. O liberalismo exigiria na sociedade internacional uma atitude de abstenção e não interferência nas lutas internas de cada Estado. Por isso uma lista minimalista seria a configuração adequada tanto ao que os Estados membros da sociedade internacional poderiam endossar quanto àquilo que eles não querem que violem sua autodeterminação. 

 Assim, as Intervenções estão autorizadas quando houverem violações aos direitos humanos de proteção à vida. Essas violações não podem ser "algumas" violações, mas violações massivas que poem em risco à vida de um grupo ou comunidade ao ponto de lhe impossibilitar o direitos de resistência e chocar a consciência moral da comunidade. 


(c) Quem é o agente encarregado para intervir?

Talvez essa umas das questões mais importantes hoje debatidas. Não quero afirmar aqui que o debate sobre quais direitos humanos autorizariam a intervenção já está concluindo, mas quando a pergunta acima ocorre abre-se uma discussão sobre quem é o agente autorizado à agir na intervenção. Nesse ponto aparecem as questões sobre politica internacional como a critica de que as Intervenções seriam instrumento do ocidente imperialista ou que seriam apenas acoes oportunistas com outros fins de razão de Estado.

Walzer analisa a pergunta acima do ponto moral. Quem é o obrigado moralmente a agir executando a intervenção?

Na Teoria da Agressão a intervenção humanitária tem a natureza de um resgate (salvamento). Enquanto tal o que importa é salvar imediatamente a vítima da situação gravosa que poe sua vida em risco. A imagem trabalha com as seguintes premissas

(i) Imagine que uma casa está pegando fogo e existem pessoas que precisam ser regatadas.
(ii) Imagine que um vizinho conhece a situação de emergência.
(iii) Se ele puder agir, por que nós acharíamos que ele esta agindo errado?
(iv) Faz sentido esperar, diante da emergência, a autoridade competente, caso o vizinho ou alguém capacitado pode agir?
(v) Faz sentido diante da necessidade de salvamento deliberar ou atrasar a ação por que não se decidiu quando agir?

Com base nessa imagem, para Walzer, todos os Estados tem o dever de intervir para salvar a vítima. O problema é que essa resposta ainda não cria um critério determinado para a executar a intervenção.

Duas questões são importantes aqui: (c.1) A ação deve ser coletiva ou unilateral? (c.2) Quais são os melhores critérios para apontar o responsável para agir?

(c.1) Walzer não entende que é a ação coletiva tem um valor moral maior do que a ação unilateral de um ou grupo de Estados. Segundo argumenta em AHI, tanto na ação unilateral quanto na ação coletiva estão sujeitas às vicissitudes da política, pois questões envolvendo os interesses dos Estados podem ocorrer e ser relevantes tanto no espaço de decisão coletiva quanto no espaço de decisão unilateral. De fato, argumenta, no espaço coletivo a situação é ainda pior, pois a dificuldade de conciliar interesses dos Estados é ampliada quanto mais Estados estejam debatendo. Nesse quadro, dada a natureza do salvamento-resgate da intervenção é como se estivéssemos diante de um incêndio deliberando quem vai entrar para salvar a vida das vítimas. 

Para Walzer seria desejável que a ação fosse tomada coletivamente, mas, dada a ausência de instituições que consigam deliberar e agir em tempo hábil, nada impede, do ponto de vista moral, que a ação unilateral, prática histórica da sociedade internacional, possa ocorrer. A analogia com o salvamento, imagem criada para tornar explícita as intuições básicas que temos em relação à intervenção, pouco importa se é um agente coletivo ou individual que opera o resgate. O que importa é o que resgate seja feito em tempo hábil no interesse da vítima. 

Nessa imagem, as organizações coletivas atuais tem agido de maneira bastante contrária ao problema moral. Isso porque tanto tem negligenciado a necessidade de resgate, situações em que não operam a intervenção, quanto tem sido pouco diligentes em tempo hábil em agir, situações em o debate sobre quando e como intervir tomam uma dimensão que retarda a operação do resgate.  

Portanto, para Walzer, nada torna a ação unilateral moralmente menos válida do que a ação coletiva. Pelo contrário, dada a natureza de salvamento, se o agente que está diante da crise conhecer a crise e puder agir, deve fazê-lo o quanto antes. 

(c.2). A natureza da intervenção nos leva ao segundo ponto: quais critério podem ser mais exatos na hora de determinar o agente? Com base na analogia com o salvamento e com exemplos históricos dois são os critérios apontados por Walzer: (a) Relações de vizinhança e (b) Melhor capacitado para agir.

Walzer argumenta que historicamente as Intervenções melhor executadas e bem sucedidas foram as executadas unilateralmente por Estados vizinhos dos Estados em crise. Bangladesh 1971 e Camboja (1978-79). A imagem do salvamento, resgate diante de um caso extremo, reforça a compreensão sobre porque um agente vizinho seria o mais habilitado a agir, pois, nesta imagem, a prontidão e a velocidade de reação são importantes para o resgate. Mas, aqui, quero reforçar um um outro aspecto do porque o Agente Vizinho é um dos mais habilitados. 

O Agente Vizinho não é o mais autorizado apenas por conta da questão moral de agir em tempo hábil. Há em Walzer um argumento epistêmico, isto é, quem conhece melhor a situação e pode com isso tomar as melhores providencias para o resgate. Segundo Walzer apenas os sujeitos que compartilham praticas sociais podem saber quais questão são moralmente relevantes para eles. 

Quando Walzer argumenta contra a intervenção com fins de mudança de regime politico, sustenta que além do direito à autodeterminação, um agente externo não pode intervir porque ele desconhece quais são as praticas comuns compartilhadas e, portanto, não pode apenas apresentar um novo regime porque viola a independência da comunidade que sofre a intervenção, mas, porque ele desconhece a realidade social e política do Estado que sofre a intervenção. A sua ação será desenvolvida no escuro. 

Dessa feita, quando Walzer defende o Agente Vizinho ele não está apenas defendendo a importância moral de agir em tempo hábil, mas defendendo que a ação do Agente Vizinho é epistêmicamente melhor informado e portanto capaz de compreender melhor a importância do salvamento. Tanto porque ele pode conhecer melhora situação da comunidade dada as relações que já desenvolve com ela quanto pelo fato de que ele é diretamente interessado na solução do problema, pois pode ser afetado por ela.  

Quanto ao segundo critério, Melhor capacidade para agir. Aqui a imagem do salvamento também é importante. Segundo Walzer, quem for o agente que estiver em melhor capacidade para agir deve fazê-lo. Tendo os instrumentos e a disponibilidade, não agir é moralmente condenável. 

Um ponto que existia em 77, mas que não aparece no texto de 2002 de maneira exaustiva, é saber se há possibilidade dos agentes se negarem a intervir. Se há um direito de intervir ou uma obrigação de intervir. Para Walzer, a possibilidade de liberar os Estados da intervenção é se a ação colocar em risco a existência do interventor ou a existência pacifica dos Estados no cenário da sociedade internacional. Assim, se a intervenção colocar a vida do agente em risco, não é exigível dele a intervenção. Também, se a intervenção colocar em risco a paz e a vida dos membros da sociedade internacional não seria moralmente exigível. 

Embora Walzer apresente essas razoes para a não incidência do obrigação de intervir, ele acredita que nas circunstancia atuais as violações massivas de direitos humanos tem ocorrido em Estados falidos, Estados desintegrados ou com poder militar e econômico sem capacidade de ameaçar a vida da sociedade internacional. Para ele não haveria então excusa para não intervir. 


(d) Quais devem ser os objetivos da intervenção humanitária?

Essa pergunta também é respondida com a imagem do salvamento. Dada a natureza de resgate, o objetivo da intervenção deve ser apenas o salvamento das comunidades e ou populações em risco. 

A questão mais problemática nesse tópico é perguntar: "se a intervenção tiver outros objetivos além do salvamento, ainda assim ela poderá ser considerada como humanitária?". Quando esta pergunta é feita entra na argumentação questões sobre o critério da intenção correta. O critério da intenção correta, elemento normativo da Teoria da Guerra Justa, exige que qualquer guerra para ser considerada justa deve não apenas ter um fundamento justo (justa causa) como os motivos (intentions) do agente que vai a guerra devem ser justos. Por que me envolvo com a guerra deve ser correto também. Esse é o campo dos motivos que impulsionam um agente à guerra. 

Por exemplo. Imagine que um determinado estado X está com uma crise humanitária, sendo uma de suas populações minoritárias A sistematicamente agredida, nos termos aqui já tratados: ação sistemática, violenta, advinda das autoridades e sem chance de resistência. Um Estado Y pode promover a intervenção nesse caso. Mas, ao mesmo tempo em que promove a intervenção, o Estado Y que aumentar suas reservas de petróleo, sendo interessante intervir porque o Estado X tem se negado a negociar com Y. O Estado Y intervem e ainda por cima consegue melhorar sue acesso ao petróleo de X. Como nesse caso o Estado Y não tinha intenções "justas", pois ele se utilizou da ação interventiva para tratar de um interesse particular seu, a teoria da guerra justa  que toma o critério da intenção correta diria que a intervenção foi injusta. 

Embora Walzer esteja dentro da tradição da teoria da guerra justa, ele não entende que o critério da intenção correta é um elemento que deve contar no julgamento da permissibilidade, justiça e legitimidade da intervenção humanitária. Uma intervenção humanitária, para Walzer, é permissível e justa independentemente das intenções do agente que lhe promove, desde que o salvamento seja realizado.

A figura do resgate na casa em chamas ajuda a entender a explicação de Walzer. Imagine uma casa em chamas com pessoas trancadas no quarto. Imagine que um dos vizinhos tem interesse em ajudar as vítimas com a intenção não revelada de num futuro próximo lhe pedir um favor. Imagine que as pessoas vítimas do incêndio tenham influencia ou alguém que interesse ao socorrista. Ele entra na casa em chamas e salva as vítimas. Se o importante é salvar a vida da vítimas em perigo, importa que as intenções do agente que salva sejam desinteressadas ou "puras"? Para Walzer, não é moralmente relevante avaliar quais são as intenções do agente, o importante é o resgate. 

Se a intervenção cumprir o objetivo de salvamento, todas as outras questões são secundárias. Podem ter a sua relevância, mas não influem para a decisão sobre a permissão de intervir. 


(e) Qual ou quais devem ser os procedimentos durante uma intervenção?

Dificilmente alguma teoria conseguiria esgotar a possível lista de critérios normativos capazes de delimitar todos os procedimentos que ocorrem durante uma intervenção humanitária. Walzer apresenta os seguintes critérios.

Primeiro a intervenção deve seguir a regra quick-out. Por ser uma excepcionalidade, dadas as circunstancias, o agente interventor deve ser o mais ágil em operar o resgate e imediatamente retirar-se do ambiente que sofre a intervenção. 

Durante o processo de intervenção, a vida de civis não deve ser ameaçada para além daquilo que não se poderia prever. Walzer entende que civis não devem sofrer danos, pois não ameaçaram nem são responsáveis pelo combate, portanto não se colocam em posição de terem suas vidas ameaçadas. 

As estratégias de combate não devem ser executadas para poupar a vida de tropas ao mesmo tempo em que retarda a obtenção do objetivo da intervenção, o resgate. A questão aqui é utilizar de estratégias como bombardeios, ataques indiretos, ataques cirúrgicos, que afetam a vida do agente que promove a grave agressão, com intuito de evitar o combate direto, poupando a vida de soldados, mas, ao mesmo tempo, permitem a continuidade da matança por um tempo maior do que um combate direto poderia evitar. Não é justo, segundo Walzer, que para evitar mortes de soldados civis continuem a ser massacrados por um tempo maior. 

A figura do salvamento é bem marcante e influencia no raciocínio moral defendido por Walzer. A cada momento que o cálculo prudencial é feito ou que se visa poupar a vida de resgatadores em detrimento do sujeito que precisa ser salvo, se está permitindo que as vítimas continuem a sofrer com a grave violação. 


(f) Como se deve encerrar as Intervenções humanitárias

As Intervenções devem se encerrar tao logo o salvamento tenha ocorrido. A regra quick-out deve ser sempre o guia da intervenção. Porém, existem algumas possibilidades e circunstancias em que a saída das tropas interventoras não é possível. Nesses casos, a manutenção da intervenção pode representar a garantia de que novos massacres não ocorram. Três situações são esboçadas por Walzer.

(a) Situações em que o massacre foi tão violento que destruiu as mais básicas instituições e recursos humanos. Nesse caso, uma saída precipitada pode trazer  risco de novos massacres dada a perda de instituições capazes de assegurar a ordem e a paz.

(b) Casos em que a saída do agente interventor pode representar o retorno dos agentes assassinos. 

(c)  Estados desintegrados que não exista um controle capaz de exercer a proteção dos povos massacrados dado que as próprias violações são executadas por agentes não estatais. 

Nesses três casos, dado que a intervenção representa uma operação de salvamento, sair rapidamente pode significar o retorno das violações massivas. 


(III) Alguns pontos para futuras discussões

A primeira consideração que tenho a fazer na argumentação de Walzer é a figura utilizada por ele do salvamento. Walzer enfatiza muito o elemento da emergência e isso faz com que outras considerações sobre a justica das intervenções fiquem apagadas. Peguemos o exemplo do incêndio.

  • "Um casa pega fogo, sei que pessoas estao lá morrendo, trata-se de uma emergência. Não exito em ajudar. Entro e salvo a vida das pessoas".

Se formos julgar a ação do sujeito que decide fazer o salvamento não seria plausível achar que ele fez algo errado. Nós o apoiaríamos. Mas a discussão acerca da justiça da situação não se encerraria nesse ponto. Nós perguntaríamos onde estão as autoridades competentes que deveriam estar de prontidão para o salvamento, bem como deveriam estar agindo preventivamente para evitar problemas como incêndios. A imagem que Walzer transmite é de um cenário em que as instituições sempre serão inábeis e lentas. Se na realidade elas o são, isso nao elimina o dever que elas teriam de agir em tempo hábil e, mais importante, preventivamente. 

Intuitivamente, entendo, nós não achamos errado um agente não oficial agir, mas intuitivamente nós também queremos que os responsáveis pelo salvamento sejam as autoridades que nós elegemos para isso. No cenário internacional nós temos essas autoridades. A ONU tem essa responsbilidade dada pelos tratados que a Sociedade Internacional celebrou em sua constituição. Do ponto de vista moral, podemos dizer que o salvamento feito por um agente não oficial pode ser correto, mas não é mais correto do que o salvamento por parte daquelas autoridades que nós elegemos. Assim, podemos aceitar o salvamento pelo agente unilateral como uma execeção, mas, não como uma regra como quer Walzer.

Entendo que Walzer enfatiza muito a questão da urgência, sua defesa das vítimas é importante, mas isso não anula os nossos juízos mais refletidos sobre o tema. Quando o fogo passa, queremos saber porque aqueles que têm a obrigação primária de agir foram omissos e lentos. Se não fosse assim, porque as autoridades buscariam cada vez mais a eficiência e a prevenção em nome da proteção de seus cidadãos.

Bom, isso nos levaria ao seguinte ponto. Walzer está trabalhando com o cenário da inoperância das instituições internacionais. Primeiro a inoperância das istituições internacionais não deve ser um elemento que define a natureza de um dever como o resgate de uma comunidade que se encontra em risco. Se o dever não for estabelecido num cenário em que exigimos o máximo e o certo do ponto de vista moral, como poderemos criticar e modificar as instituições atuais. Em segundo plano, não existe do ponto de vista prático como entender a inoperância como uma forma legítima de ação dos Estados. 

Contudo quero observar aqui que as relações internacionais assumidas por Walzer poderiam muito mais ser enquadradas num cenário ou época da guerra fria. Walzer é demasiado estatista e concebe as relacoes internacionais num sentido que entendo ser também minimalista. Os Estados são unidades separadas e estanques em que suas decisões ainda podem ser tomadas sem consideração as relações de interdependência que a globalização nos trouxe. Quando Walzer escreve sobre a sociedade internacional ele defende um pluralismo de instituições responsáveis pelos avanços das liberdades. Mas, sempre, o principal agente é o Estado. Ele ainda é o detentor da soberania. Isso eu ainda tenho que analisar nele. Mas, a impressção que tenho é a de que Walzer não atualizou sua fotografia do mundo depois da Guerra Fria. 

Outras questões podem ser levantadas....mas deixo para um próximo post.

Auf wiederlesen!




quinta-feira, 12 de junho de 2014

A estrutura dilemática das intervencoes humanitárias

Martin Frank. The Dilemmatic Structure of Humanitarian Interventions. IN Georg Meggle (ed.) Ethics of Humanitarian Interventions. Ontos Verlag, Frankfurt 2014, p. 97-113.


Um grande problema para todo estudante do tema Intervencoes Humanitárias - (I.H.) é ter de lidar com um amplo espectro teórico geralmente organizado em pelo menos tres  grandes areas de estudo: 1. a Política; 2. a Moral; e 3. Legal. Existem estudiosos que analisam o tema prioritariamente a partir de suas areas de formacao, considerando secundariamente as demais areas, pois dificilmente se consegue ignorar as demais areas. Existem estudiosos que procuram apensa formular suas posicoes a partir de sua formacao. Por exemplo, se preocupam apenas com a formulacao de um argumento moral sobre a permissibilidade das intervencoes, ou analisam a estrita legalidade das intervencoes. Por último, existem estudiosos que tentam formular teorias e argumentos que procuram dar uma resposta moral, jurídica e politica ao tema. A ordem e peso dada a cada uma dessas areas depende muito da pergunta que se está fazendo sobre o tema.

Esta semana, cumprindo a agenda de estudos em torno do tema, li o texto de Martin Frank (referencia acima) cuja proposta central é afirmar que o tema (caso) das (I.H.) é estruturado de forma dilemática. O que quer dizer isso?

Segundo Martin Frank, um dilema é uma situacao de escolha entre dois principios que sao igualmente relevantes cujo resultado nao pode ignorar nenhum dos lados. Dilemas sao casos especiais de conflitos que requerem uma solucao entre duas opcoes contraditorias igualmente más (p.103). Mas por que podemos considerar as (I.H.) dilemas?

Para responder a essa questao, Martin Frank retoma o conceito de (I.H.) a partir da definicao assumida desde a formacao do Sistema de Potencias - (S.P.) (Westphalia - 1648) (p.100), características sao abaixos descritas (p. 101):

(i) Prioritariamente é preocupado com a soberania externa das comunidades políticas. Assume o conceito de independencia política e se pergunta sobre a possibilidade de coexistencia plural de Estados independentes no cenário internacional.
(ii) O que sustenta a coexistencia é o mútuo respeito à soberania dos Estados.
(iii) O mútuo respeito implica o reconhecimento da igualdade entre os Estados dentro de (S.P.). Dado que os Estados sao diferentes em poder, economia, prestígio, capacidade militar, a igualdade é assegurada por meio do direito que subscreve o mesmo status legal aos Estados membros de (S.P.).
(iv) O mútuo respeito implica no dever de nao-interferencia nos assuntos internos de cada Estado membro de (S.P.).
(v) A igualdade de condicoes, igualdade de status juridico entre os Estados, implica que (S.P.) é um sistema anárquico e nao anomico.

Uma vez que (S.P.) tem essas caraceterísticas é que se pode falar do conceito de (I.H.). Se (S.P.) nao existisse, nao faria sentido (I.H.): 

"se nao há pluralidade Estados soberanos iguais nao haveriam casos de intervencoes humanitarias. Nao é que atrocidades humanitarias nao possam ocorrer, pelo contrario elas provavelmente sempre ocorrerao. Mas, intervencao só pode surgir como conceito se houverem Estados que possam resistir à ela sob os fundamentos da autonomia e da soberania".

O dilema surge porque, dadas as características de (S.P.), (I.H.) nos posiciona diante da escolha de pelo menos dois princípios de (S.P.). Tais princípios sao igualmente válidos. Possuem forca normativa igual, pois ambos sao capazes de guiar a acao. O agente racional que escolherá sabe que tem de escolher um dos principios, mas que tal escolha implicará na violacao de um dos principios que ele considera como importate e constitutivo do sistema que participa. Diante desse quadro, tal escolha se dá com a certeza de a decisao a ser tomada tem de justificar com uma razao suficiente porque um dos princípios de (S.P.) será afastado para dar aplicacao ao outro.

A escolha entre dos princípios é a escolha entre duas opcoes igualmente más porque um dos principios que o agente racional escolherá afastará o outro que ele entende como fundamental para o sistema que pertence. (I.H.) nos posiciona diante da tomada de decisao entre:

(a) No plano político: o agente tem de escolher entre (S) soberania estatal x (ID) deveres internacionais.
(b) No plano legal: o agente tem escolher entre (NI) proibicao da intervencao x (DH) normas de direitos humanos.
(c) No plano moral: o agente tem de escolher entre (AD) autodeterminacao dos povos x (DM) direitos morais individuais dos seres humanos.

Dada a inevitabilidade de escolher entre os princípios acima a discussao sobre (IH) pode ser oganizada conforme o gráfico abaixo:

(I)                                  (II)                           (III)                          (IV)                       (V)
--------------------|----------------------|----------------------|-------------------|---------------------->
Estatismo                     excecao                         direito                       dever             Política Interna Mundia


 <----------------------------------------------------------------->
Intervalo D
                                  
Direitos de Soberania  <<<<<<<>>>>>>Direitos Humanos
                           
No polo mais à esquerda (I) temos uma defesa do Sistema de Potencias, polo em que a soberania estatal é o elemento de maior peso. Nesse polo, a intervencao é proibida. As intervencoes nao representam nada mais do que o exercício do poder dos Estados mais fortes na execucao de suas próprias políticas.

Ao passo em que a soberania estatal vai tendo seu peso gradativamente diminuido a escala ira conduzir à novas consideracoes sobre (IH). A posicao (II) entende que as intervencoes sao proibidas, mas, em alguns casos, ela pode ser uma excecao à ordem de (SP). Já nao se trata apenas do exercício das razoes de Estado, do poder puro explícito de um Estado, mas da possibilidade de alguns direitos já serem objeto de apreciacao dos membros de (SP). Algumas exececoes já podem ser aceitas como normas que regulam as relacoes de (SP). A análise das internvencoes já passa a ser orientada por um discurso de direitos.

(III) Posicao que nao se decide pela posicao mais defensiva da soberania estatal ou mais ativa da liberalizacao da intervencao. Comparada com (II) entende que as (IH) sao um pouco mais do que excecoes dentro de (SP), sendo mais vezes moralmente justificadas. Difere de (II) porque as (IH) nao sao excecoes ao sistema, mas, regras que compoe o sistema. Em (II) as razoes que possibilitam as (IH) vem de fora de (SP), sao razoes morais que constragem as razoes do (SP). Mas, em (III) as intervencoes podem ser legítimas se consideramos os próprios direitos de soberania dos Estados.    

(IV) Coloca os direitos humanos acima dos direitos estatais dos membros de (SP), devendo as intervencoes serem sempre utilizadas para por fim à violacoes de direitos humanos. Considera tal responsabilidade coletiva e um dever internacional. Os deveres humanitários sao a prioridade. Os direitos estatais dos membros de (SP) nao entram mais nas consideracoes sobre a justificacao da permissao para intervir ou nao, restringindo-se apenas à consideracoes sobre os limites da execucao da intervencao, isto é, da melhor maneira de realizá-la: diminuir danos, eficácia, tempo da intervencao, questoes operacionais, etc.

Em (V) temos a total desconsideracao para a soberania estatal. Tal desconsideracao nao se restringe apenas à derrogar, afastar ou nao considerar, mas, sim, em extinguir (SP). Em uma nova ordem global, a soberania estatal nao é mais um elemento costititutivo da ordem internacional. Nesse cenário as intervencoes sao acoes policiais e nao violacoes dos direitos de soberania dos Estados.

Apresentada a estrutura dilemática, a questao que se coloca diante do estudioso de (IH) é saber quais sao as razoes para adotar a organizacao proposta por Martin Frank? Ao mesmo tempo quais sao as vantagens em adotar essa abordagem na hora de discutir sobre (IH)? 

A primeria razao para adotar essa estrutura dilemática, argumenta MF, é afirimar que nao temos como fugir, nao há como escapar da dificil escolha entre princípios e elementos que constituem a realidade do debate sobre (IH). Seja o estudioso, político, ativista, cidadao, todos temos de levar com consideracao que existem pontos positivos e negativos entre as posicoes. Defender um dos extremos é sacrificar parte daquilo que nós consideramos importante. Por exemplo, o fetiche do estatismo (I), como MF define as posicoes mais à esquerda do diagrama acima, nao leva em consideracao os direitos humanos e sua relevancia para os individuos. Já os defensores da Política Interna Mundial (V) defendem uma utopia ainda nao realizada, bem como nao consideram como significativa os direitos estatais de soberania.

O segundo argumento é de que a estrutura dilemática nos ajuda a compreender os sentimentos morais ambivalentes que temos em relacao às (IH). Martin Frank entende que apesar de aceitarmos ou tolerarmos as intervencoes temos um sentimento de que elas nao sao acoes boas.

Em terceiro lugar aponta que a estrutura dilemática tem um potencial explicativo maior sobre as condicoes e limites das IH, pois leva em consideracao tanto os pontos positivos da autoderterminacao|nao-intervencao quanto os pontos positivos dos direitos humanos|intervancao. A estrutura dilemática tenta estabelecer um equilíbrio entre os direitos de soberania e direitos humanos.

Por último, defende que, mesmo que se adote (I) ou (IV) o que está em jogo quando estamos diante de (IH) é uma decisao que tem de balancear as razoes divergentes, devendo a decisao sobre (IH) ser tomada num processo que nao tente escapar da estrutura dilemática, uma vez que tal estrutura está amplamente fundada nas relacoes sociais e políticas da realidade. Isto é, ao ignorar a estrutura dilemética, estamos ignorando as restricoes e exigencias dadas pela realidade social e política. Solucoes que ignoram a estrutura dilemática nao sao capazes de serem compreendidas, aceitas e capazes de guiar a acao dos agentes. A estrutura dilemática leva em consideracao a possibilidade de oferecer razoes que podem ser consideradas pelos agentes, pois nao oferece uma resposta que ignora suas necessidades e perguntas.

***

Nao posso deixar de antecipar algumas consideracoes que me veem a mente ao escrever sobre o texto de Martin Frank. As faco aqui mais para registrar as minhas questoes, deixando-as em aberto ao mesmo tempo que estou totalmente aberto às contribuicoes dos colegas.

A primeira questao que vejo é a caracterizacao do Sistema de Potencias dado por Martin Frank. Nao consigo concordar com a interpretacao de que Westphalia estabelece uma organizacao que nao está apenas preocupada com as razoes de Estado. Historicamente, 1648 e os demais tratados que se seguiram sao uma série de pactos e tratados entre monarquias absolutistas que visavam a protecao de suas propriedades, àquela época, os países e territórios dos nascentes Estados nacionais. Descrever que SP foi estruturado de forma a estabelecer uma igualdade entre os Estados nao diz nada sobre se tal igualdade foi decidida por compreender que os Estados sao pessoas morais que precisam respeitar os limites sobre como tratar seus seus cidadaos ou comunidades.

É importante pensar nisso porque a autodeterminacao, direito que protege os povos, cidadaos, comunidades, dos Estados e lhes permite a possibilidade da independencia política passou a ser mais usadas nesses termos no período pós-colonial. A independencia política até entao, foi muito mais a ausencia de constrangimentos às razoes de Estados e nao teve, até o período pós-colonial, um sentido universalista, mas, sim, apenas negativo. A ideia era nao interferir nos assuntos externos dos Estados membros do Sistema de Potencias. Países que foram colonias, nao gozavam dessa mesma igualdade e direito à autodeterminacao.

Mas, poderia ser objetado que tal crítica nao é analítica, pois histórica, assim, nao afetaria a estrutura do que Martin Frank está argumentando. Ocorre que entender essa dinamica nos ajuda a pensar se Martin Frank separou os conceitos e os organizou de forma que as contraposicoes fossem entre conceitos de mesma classe ou espécie. Ao meu ver, pois ainda estou refletindo, nao está claro se as contraposicoes dilemáticas ocorrem entre principios que tem a mesma natureza, finalidade e justificacao.

(P.S.: peco desculpas a todos pela falta de alguns acentos e demais elementos da língua portuguesa. Tal fato se dá por eu ter comprado um netbook aqui na Alemanha, no qual ainda nao descobri como inserir o "til" e outros elementos.)



quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Iniciação à Análise Econômica do Direito.


Richard Posner e a Economia da Justiça.
Notas sobre o Prefácio à edição brasileira, Prefácio (1983) e Prefacio à 1ª Edição.

Nesse post busco resumir os pontos apresentados por Posner na obra Economia da Justiça. Tenho interesse em continuar os estudos sobre Economics and Law (http://plato.stanford.edu/entries/legal-econanalysis/). Quero iniciar uma investigação criteriosa das posições de Posner para saber se estamos nos apropriando corretamente dessa corrente do pensamento jurídico anglofônico. 

Para isso quero primeiro estudar me apropriando dos elementos conceituais e argumentativos de Posner. Sigo o conselho de Rawls nesse estudo. Ao estudar os grandes expoentes da filosofia política (Hobbes, Locke, Mill, etc) Rawls observou que ao estudar um autor nós temos de fazer primeiro um esforço para entender o que eles dizem e interpretá-los da melhor maneira possível permitida por suas teorias (Lectures on the History of Political Philosophy, p. 104). Minha intenção então é esta. Primeiro me aproximar com o rigor necessário de quem assume a teoria como sua. Num segundo momento estudar de maneira imanente os limites e respostas da teoria. As vezes estes dois pontos poderão ser intercalados.  


I - Prefácio à edição brasileira.

Posner incia admitindo que o contexto contemporâneo do direito, de maneira mais acentuada na common law, mas também uma cada vez mais na civil law, há uma tendencia pela adoção de uma concepção não positivista do papel do Judiciário e da interpretação constitucional. A textura aberta dos textos legislativos conduz ao exercício da discricionariedade judicial.

Como os juízes devem decidir? Qual postura tomar diante da lei? Como interpretar o texto legal? Essas são perguntas que também preocupam Posner. 

Sua proposta é apresenta uma terceira via entre o que ele chama positivismo jurídico estrito (http://plato.stanford.edu/entries/legal-positivism/) e a livre interpretação constitucional. Aqui Posner não faz referência à que teorias e autores poderiam ser inseridos nessas duas correntes do pensamento jurídico. Porém, sabemos que no mundo anglofônico Hart e seus alunos representariam o primeiro espectro. Talvez o Realismo Jurídico e o Critical Legal Studies a segunda. Preciso verificar isso para poder situar o estudo de Posner melhor. 

A terceira via de Posner é apresentar a Teoria Econômica. Posner se posiciona pela manutenção da discricionariedade da atuação do judiciário e propõe que este espaço de livre atuação seja conduzido pelos ditames da teoria econômica aplicada ao direito (p.XII).

Para defender sua proposta Posner se coloca diante da indagação sobre a possibilidade da teoria econômica ser aplicável ao direito. A linguagem da economia e a linguagem do direito podem ser relacionadas? A economia se aplica apenas aos fenômenos econômicos ou ela pode ser aplicada à outras áreas da interação social?

Posner recorre à Jeremy Bentham (http://plato.stanford.edu/entries/utilitarianism-history/) para ilustrar que a teoria econômica não se aplica exclusivamente aos fenômenos econômicos. Antes de ser um ferramental de análise do estritamente econômico a economia é uma teoria da escolha racional. Ela pode ser compreendida como o estudo de como os indivíduos moldam seu comportamento diante da influência de incentivos e restrições que nem sempre têm uma dimensão monetária. 

Assim, todo e qualquer ambiente pode oferecer ganhos e perdas que devem ser avaliadas pelos sujeitos à luz da utilidade e desutilidade da tomada de decisão. Posner fala de uma racionalidade que é pragmática, pois leva em consideração os interesses dos indivíduos num dado contexto concreto e normativa no sentido de que a tomada de decisão segue uma regra específica: é racional agir com vistas ao maior ganho de utilidade e irracional agir para obter um ganho menor. Posner está assumindo, poderíamos indagar, uma racionalidade utilitarista? 

Após Bentham, a retomada da economia como teoria da escolha racional é feita pela Escola de Chicago (Milton Friedman, George Stigler, Ronald Coase, Henry Simmons e Gary Becker Esses estudiosos lançaram os fundamentos da análise econômica do direito. Que tipo de formulações sobre o direito esses teóricos produziram. Posner nos dá os seguinte exemplos:

A. Com Bentham, Posner dá o exemplo de um indivíduo que deseja (incentivo) matar seu cônjuge. Quando resolver tomar essa decisão, entende Posner, o sujeito avalia que pode sofrer a pena de restrição à sua liberdade. Diante dessa balança o sujeito sempre avalia sobre a utilidade do crime e a desutilidade da punição. 

B. Com a Escola de Chicago, Posner dá um exemplo sobre responsabilidade civil: o motorista que deseja economizar tempo (incentivo) conduzindo seu veículo com excesso de velocidade se defronta com o medo de ferir-se num acidente ou com a possibilidade de ser condenado em juízo por imprudência tendo de pagar uma indenização (restrições), por exemplo. Para a Análise Econômica a responsabilidade civil deve considerar a imprudência como a não tomada de precauções cujo custo seria justificado, ou seja, a não toma de precauções que poderiam evitar o acidente a um custo menor que o próprio acidente.

Não há como antecipar agora uma reflexão mais profunda sobre o que Posner está propondo. Por enquanto devemos anotar que ele está lidando em ambos exemplos com uma incentivos e restrições que apelam para os sentimentos ou elementos psicológicos dos agentes. Em ambos os exemplos podemos notar que está tratando de desejos (incentivos) e medos (restrições). No final do segundo exemplo, apenas, podemos destacar que o julgamento sobre a racionalidade da ação (tomar precauções que sejam mais baratas do que as perdas do acidente) não se liga aos aspectos psicológicos. 

Então, preliminarmente, indagamos o seguinte: num primeiro momento o comportamento dos indivíduos está inserido no quadro de desejos e restrições que se apresentam numa dada situação concreta, porém, a ação racional é aquela que procura o menor custo ou maximização dos ganhos econômicos que não está ligada às paixões do individuo porque o racional não é, como no segundo exemplo, aquilo que satisfaz os desejos do sujeito, mas o que diminui suas perdas econômicas estritamente consideradas, ou seja, que lhes causam menor custo.

A partir dessa perspectiva, Posner batiza sua proposta teórica para a discricionariedade da atuação judicial com o nome de "maximização da riqueza". Seu intento é a análise do custo-benefício como forma de orientação da decisão judicial (p. XIV e XV).

Novamente, seguindo a ideia de que a economia não analisa apenas fenômenos estritamente econômicos, Posner quer demarcar sua posição afirmando que não se trata apenas de uma teoria que procura apontar qualquer aumento da receita pecuniária maximizando a riqueza como boa. A essência da abordagem reside em considerar todos custos e benefícios (pecuniários ou não) como forma de decidir se uma determinada norma (jurídica)  como prática ou eficiente. Para isso ele propõe que todos estes custos (pecuniários ou não) sejam traduzidos em pecúnia em uma unidade comum, o dinheiro.

Até aqui podemos ver a seguinte estrutura:

1. A economia não se aplica apenas à fenômenos econômicos. Ela trata da escolha racional dos indivíduos que inclui fenômenos econômicos e fenômenos não econômicos. 
2. Racionalidade é agir de forma a ampliar os ganhos e diminuir os custos.
3. Para avaliar a racionalidade de uma norma jurídica devemos avaliar todos os possíveis ganhos e perdas que ela pode produzir.
4. Nessa avaliação temos de levar em consideração que existem ganhos e custos que não são estritamente econômicos. Assim, para poder fazer a avaliação racional temos de traduzir o não pecuniário em pecuniário. Unindo todos os elementos nu código comum: o dinheiro.

Ficam então as seguintes observações: 

(A) como traduzir o que não é pecuniário (desejos e medos) em pecuniário? Como saber o valor pecuniário do medo de levar uma multa? Qual é dose necessária de não incentivo ou estímulo econômico suficiente para coordenar a ação?

(B) O Dinheiro é o código capaz de traduzir esses elementos que não são estritamente econômicos para um campo comum em que a racionalidade utilitária pode decidir?

 Essas indagações conduzem ainda uma terceira:

(C) Ainda temos de verificar qual é a prova antropológica ou sociológica que Posner dá para considerar que em todas as situações ou no direito a racionalidade utilitária é a que ocorre ou a que melhor corresponde às nossas intuições básicas acerca da ação ou da norma jurídica.

Posner entende que a economia possui um ferramental capaz de pecuniarizar os custos e benefícios não pecuniários.  Podemos pensar na econometria, pesquisas empíricas, etc. Posner não diz agora quais são esses estudos. Apenas afirma que a análise econômica então recomendaria essas técnicas com vistas a possibilitar a análise do custo benefício de condutas regulamentadas pela lei. 

Com base nesses elementos, os juízes deveriam, no âmbito da discricionariedade,  utilizar amplamente das margens de decisão que possuem para aplicar a análise econômica e maximizar os resultados eficientes, entendidos como resultados que evitam desperdício social. Também fica, preliminarmente, a questão sobre o que se pode entender por desperdício social. 

Na continuidade, Posner defende que a análise econômica é uma metodologia aplicável à todas as áreas do direito, não apenas ao direito privado, mas, também, ao direito público, sobretudo o constitucional. Questões constitucionais como o tema da liberdade de expressão ou proteção da privacidade na persecução penal podem ser avaliadas com a análise econômica. Seriam questões envolvendo problemas de regulamentação de mercado ou análise de custos e benefícios no processo penal, respectivamente.

As margens de discricionariedade presentes tanto no texto constitucional quanto nas leis infraconstitucionais reguladoras podem ser disciplinas, defende Posner, com a análise econômica do direito. Posner é enfático: quando diante de uma indeterminação interpretativa gerada pela textura aberta das normas, o juiz deve buscar sanar as lacunas, vácuo, etc., com a análise econômica. 

Nesse aspecto, temos de verificar o que justifica essa abordagem. Por que aplicar os pressupostos da análise econômica na discricionariedade é melhor do que outras posições? Por que decisões que maximizem ganhos e reduzam perdas, mesmo no sentido amplo defendido por Posner podem ser consideradas melhores do que outras que não trabalham sobre esse espectro teórico?

Além dos pontos acima, Posner sustenta que a análise econômica não preconiza apenas um uso normativo. A análise econômica seria o modo de decidir que os juízes mais escolhem quando diante de um espaço atuação discricionário. Nos casos em que o magistrado encontra-se com a tarefa de determinar o conteúdo legal da norma de textura aberta, especialmente nos países de common law, os juízes se deixam guiar pelo entendimento intuitivo da economia do litígio.

Nos EUA as decisões do famoso juiz americano Learned Hand sobre a responsabilidade civil culposa indicariam a tese de Posner. Aqui Posner avança uma tese de que quando queremos descrever como atuam os juízes na construção do sistema legal esta atuação é fortemente determinada pelas intuições econômicas cuja racionalidade Posner defendeu acima. Em outras palavras, quando estudado apenas do ponto de vista explicativo empírico, o Direito possuiria uma natureza econômica. Assim, a análise econômica não seria apenas uma proposta teórica sobre a melhor forma de decidir, mas, também, a forma pela qual a prática da decisão judicial, quando não tematizada ou influenciada por outras teorias, ocorreria:

"Seria um exagero dizer que a economia é a própria essência vital do direito, mesmo no common law anglo-americano. Mas trata-se de um exagero sugestivo, que aponta para uma afinidade profunda, embora incompleta, entre o processo legal e a teoria das escolhas racionais" (p. XVI)

   
Ao final Posner levanta questões sobre a possibilidade da aplicação da análise econômica no Brasil. A primeira se refere ao processo de formação dos juízes. Já a segunda ao contexto e especificidades que países em desenvolvimento apresentam e como a análise econômica precisa ser adaptada.

A análise econômica certamente encontra barreiras e obstáculos nos países de civil law dada a formação metodologicamente conservadora de juízes, advogados e demais profissionais do direito. Essa formação conservadora se expressa na desconfiança que temos do uso político da discricionariedade  e na recusa da influência de outras disciplinas no estudo do direito. Por isso, recomenda Posner, a introdução da análise econômica deve ficar a cargo das universidades e faculdades de direito. 

Por sua vez, a análise econômica em países em desenvolvimento deve levar em consideração o contexto de sua aplicação. Como perspectiva teórica nascida nos países desenvolvidos, a análise econômica preconiza um pano de fundo pacificado em torno de temas como a importância dos direitos de propriedade, liberdade contratual, independência do judiciário, da discricionariedade judicial bem orientada e das limitações do poder do Estado. Aqui é quase como Posner estivesse dizendo: a análise econômica se desenvolveu em economias de mercado sólidas e politicamente liberais. 

Por isso, a análise econômica tem de ser adequada ao contexto em que estas "bases" regulatórias ainda estão em construção. Todavia, para Posner, isso apenas confirma a importância e abrangência da análise econômica e não a sua inviabilidade de ser aplicada no nosso país.