quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Iniciação à Análise Econômica do Direito.


Richard Posner e a Economia da Justiça.
Notas sobre o Prefácio à edição brasileira, Prefácio (1983) e Prefacio à 1ª Edição.

Nesse post busco resumir os pontos apresentados por Posner na obra Economia da Justiça. Tenho interesse em continuar os estudos sobre Economics and Law (http://plato.stanford.edu/entries/legal-econanalysis/). Quero iniciar uma investigação criteriosa das posições de Posner para saber se estamos nos apropriando corretamente dessa corrente do pensamento jurídico anglofônico. 

Para isso quero primeiro estudar me apropriando dos elementos conceituais e argumentativos de Posner. Sigo o conselho de Rawls nesse estudo. Ao estudar os grandes expoentes da filosofia política (Hobbes, Locke, Mill, etc) Rawls observou que ao estudar um autor nós temos de fazer primeiro um esforço para entender o que eles dizem e interpretá-los da melhor maneira possível permitida por suas teorias (Lectures on the History of Political Philosophy, p. 104). Minha intenção então é esta. Primeiro me aproximar com o rigor necessário de quem assume a teoria como sua. Num segundo momento estudar de maneira imanente os limites e respostas da teoria. As vezes estes dois pontos poderão ser intercalados.  


I - Prefácio à edição brasileira.

Posner incia admitindo que o contexto contemporâneo do direito, de maneira mais acentuada na common law, mas também uma cada vez mais na civil law, há uma tendencia pela adoção de uma concepção não positivista do papel do Judiciário e da interpretação constitucional. A textura aberta dos textos legislativos conduz ao exercício da discricionariedade judicial.

Como os juízes devem decidir? Qual postura tomar diante da lei? Como interpretar o texto legal? Essas são perguntas que também preocupam Posner. 

Sua proposta é apresenta uma terceira via entre o que ele chama positivismo jurídico estrito (http://plato.stanford.edu/entries/legal-positivism/) e a livre interpretação constitucional. Aqui Posner não faz referência à que teorias e autores poderiam ser inseridos nessas duas correntes do pensamento jurídico. Porém, sabemos que no mundo anglofônico Hart e seus alunos representariam o primeiro espectro. Talvez o Realismo Jurídico e o Critical Legal Studies a segunda. Preciso verificar isso para poder situar o estudo de Posner melhor. 

A terceira via de Posner é apresentar a Teoria Econômica. Posner se posiciona pela manutenção da discricionariedade da atuação do judiciário e propõe que este espaço de livre atuação seja conduzido pelos ditames da teoria econômica aplicada ao direito (p.XII).

Para defender sua proposta Posner se coloca diante da indagação sobre a possibilidade da teoria econômica ser aplicável ao direito. A linguagem da economia e a linguagem do direito podem ser relacionadas? A economia se aplica apenas aos fenômenos econômicos ou ela pode ser aplicada à outras áreas da interação social?

Posner recorre à Jeremy Bentham (http://plato.stanford.edu/entries/utilitarianism-history/) para ilustrar que a teoria econômica não se aplica exclusivamente aos fenômenos econômicos. Antes de ser um ferramental de análise do estritamente econômico a economia é uma teoria da escolha racional. Ela pode ser compreendida como o estudo de como os indivíduos moldam seu comportamento diante da influência de incentivos e restrições que nem sempre têm uma dimensão monetária. 

Assim, todo e qualquer ambiente pode oferecer ganhos e perdas que devem ser avaliadas pelos sujeitos à luz da utilidade e desutilidade da tomada de decisão. Posner fala de uma racionalidade que é pragmática, pois leva em consideração os interesses dos indivíduos num dado contexto concreto e normativa no sentido de que a tomada de decisão segue uma regra específica: é racional agir com vistas ao maior ganho de utilidade e irracional agir para obter um ganho menor. Posner está assumindo, poderíamos indagar, uma racionalidade utilitarista? 

Após Bentham, a retomada da economia como teoria da escolha racional é feita pela Escola de Chicago (Milton Friedman, George Stigler, Ronald Coase, Henry Simmons e Gary Becker Esses estudiosos lançaram os fundamentos da análise econômica do direito. Que tipo de formulações sobre o direito esses teóricos produziram. Posner nos dá os seguinte exemplos:

A. Com Bentham, Posner dá o exemplo de um indivíduo que deseja (incentivo) matar seu cônjuge. Quando resolver tomar essa decisão, entende Posner, o sujeito avalia que pode sofrer a pena de restrição à sua liberdade. Diante dessa balança o sujeito sempre avalia sobre a utilidade do crime e a desutilidade da punição. 

B. Com a Escola de Chicago, Posner dá um exemplo sobre responsabilidade civil: o motorista que deseja economizar tempo (incentivo) conduzindo seu veículo com excesso de velocidade se defronta com o medo de ferir-se num acidente ou com a possibilidade de ser condenado em juízo por imprudência tendo de pagar uma indenização (restrições), por exemplo. Para a Análise Econômica a responsabilidade civil deve considerar a imprudência como a não tomada de precauções cujo custo seria justificado, ou seja, a não toma de precauções que poderiam evitar o acidente a um custo menor que o próprio acidente.

Não há como antecipar agora uma reflexão mais profunda sobre o que Posner está propondo. Por enquanto devemos anotar que ele está lidando em ambos exemplos com uma incentivos e restrições que apelam para os sentimentos ou elementos psicológicos dos agentes. Em ambos os exemplos podemos notar que está tratando de desejos (incentivos) e medos (restrições). No final do segundo exemplo, apenas, podemos destacar que o julgamento sobre a racionalidade da ação (tomar precauções que sejam mais baratas do que as perdas do acidente) não se liga aos aspectos psicológicos. 

Então, preliminarmente, indagamos o seguinte: num primeiro momento o comportamento dos indivíduos está inserido no quadro de desejos e restrições que se apresentam numa dada situação concreta, porém, a ação racional é aquela que procura o menor custo ou maximização dos ganhos econômicos que não está ligada às paixões do individuo porque o racional não é, como no segundo exemplo, aquilo que satisfaz os desejos do sujeito, mas o que diminui suas perdas econômicas estritamente consideradas, ou seja, que lhes causam menor custo.

A partir dessa perspectiva, Posner batiza sua proposta teórica para a discricionariedade da atuação judicial com o nome de "maximização da riqueza". Seu intento é a análise do custo-benefício como forma de orientação da decisão judicial (p. XIV e XV).

Novamente, seguindo a ideia de que a economia não analisa apenas fenômenos estritamente econômicos, Posner quer demarcar sua posição afirmando que não se trata apenas de uma teoria que procura apontar qualquer aumento da receita pecuniária maximizando a riqueza como boa. A essência da abordagem reside em considerar todos custos e benefícios (pecuniários ou não) como forma de decidir se uma determinada norma (jurídica)  como prática ou eficiente. Para isso ele propõe que todos estes custos (pecuniários ou não) sejam traduzidos em pecúnia em uma unidade comum, o dinheiro.

Até aqui podemos ver a seguinte estrutura:

1. A economia não se aplica apenas à fenômenos econômicos. Ela trata da escolha racional dos indivíduos que inclui fenômenos econômicos e fenômenos não econômicos. 
2. Racionalidade é agir de forma a ampliar os ganhos e diminuir os custos.
3. Para avaliar a racionalidade de uma norma jurídica devemos avaliar todos os possíveis ganhos e perdas que ela pode produzir.
4. Nessa avaliação temos de levar em consideração que existem ganhos e custos que não são estritamente econômicos. Assim, para poder fazer a avaliação racional temos de traduzir o não pecuniário em pecuniário. Unindo todos os elementos nu código comum: o dinheiro.

Ficam então as seguintes observações: 

(A) como traduzir o que não é pecuniário (desejos e medos) em pecuniário? Como saber o valor pecuniário do medo de levar uma multa? Qual é dose necessária de não incentivo ou estímulo econômico suficiente para coordenar a ação?

(B) O Dinheiro é o código capaz de traduzir esses elementos que não são estritamente econômicos para um campo comum em que a racionalidade utilitária pode decidir?

 Essas indagações conduzem ainda uma terceira:

(C) Ainda temos de verificar qual é a prova antropológica ou sociológica que Posner dá para considerar que em todas as situações ou no direito a racionalidade utilitária é a que ocorre ou a que melhor corresponde às nossas intuições básicas acerca da ação ou da norma jurídica.

Posner entende que a economia possui um ferramental capaz de pecuniarizar os custos e benefícios não pecuniários.  Podemos pensar na econometria, pesquisas empíricas, etc. Posner não diz agora quais são esses estudos. Apenas afirma que a análise econômica então recomendaria essas técnicas com vistas a possibilitar a análise do custo benefício de condutas regulamentadas pela lei. 

Com base nesses elementos, os juízes deveriam, no âmbito da discricionariedade,  utilizar amplamente das margens de decisão que possuem para aplicar a análise econômica e maximizar os resultados eficientes, entendidos como resultados que evitam desperdício social. Também fica, preliminarmente, a questão sobre o que se pode entender por desperdício social. 

Na continuidade, Posner defende que a análise econômica é uma metodologia aplicável à todas as áreas do direito, não apenas ao direito privado, mas, também, ao direito público, sobretudo o constitucional. Questões constitucionais como o tema da liberdade de expressão ou proteção da privacidade na persecução penal podem ser avaliadas com a análise econômica. Seriam questões envolvendo problemas de regulamentação de mercado ou análise de custos e benefícios no processo penal, respectivamente.

As margens de discricionariedade presentes tanto no texto constitucional quanto nas leis infraconstitucionais reguladoras podem ser disciplinas, defende Posner, com a análise econômica do direito. Posner é enfático: quando diante de uma indeterminação interpretativa gerada pela textura aberta das normas, o juiz deve buscar sanar as lacunas, vácuo, etc., com a análise econômica. 

Nesse aspecto, temos de verificar o que justifica essa abordagem. Por que aplicar os pressupostos da análise econômica na discricionariedade é melhor do que outras posições? Por que decisões que maximizem ganhos e reduzam perdas, mesmo no sentido amplo defendido por Posner podem ser consideradas melhores do que outras que não trabalham sobre esse espectro teórico?

Além dos pontos acima, Posner sustenta que a análise econômica não preconiza apenas um uso normativo. A análise econômica seria o modo de decidir que os juízes mais escolhem quando diante de um espaço atuação discricionário. Nos casos em que o magistrado encontra-se com a tarefa de determinar o conteúdo legal da norma de textura aberta, especialmente nos países de common law, os juízes se deixam guiar pelo entendimento intuitivo da economia do litígio.

Nos EUA as decisões do famoso juiz americano Learned Hand sobre a responsabilidade civil culposa indicariam a tese de Posner. Aqui Posner avança uma tese de que quando queremos descrever como atuam os juízes na construção do sistema legal esta atuação é fortemente determinada pelas intuições econômicas cuja racionalidade Posner defendeu acima. Em outras palavras, quando estudado apenas do ponto de vista explicativo empírico, o Direito possuiria uma natureza econômica. Assim, a análise econômica não seria apenas uma proposta teórica sobre a melhor forma de decidir, mas, também, a forma pela qual a prática da decisão judicial, quando não tematizada ou influenciada por outras teorias, ocorreria:

"Seria um exagero dizer que a economia é a própria essência vital do direito, mesmo no common law anglo-americano. Mas trata-se de um exagero sugestivo, que aponta para uma afinidade profunda, embora incompleta, entre o processo legal e a teoria das escolhas racionais" (p. XVI)

   
Ao final Posner levanta questões sobre a possibilidade da aplicação da análise econômica no Brasil. A primeira se refere ao processo de formação dos juízes. Já a segunda ao contexto e especificidades que países em desenvolvimento apresentam e como a análise econômica precisa ser adaptada.

A análise econômica certamente encontra barreiras e obstáculos nos países de civil law dada a formação metodologicamente conservadora de juízes, advogados e demais profissionais do direito. Essa formação conservadora se expressa na desconfiança que temos do uso político da discricionariedade  e na recusa da influência de outras disciplinas no estudo do direito. Por isso, recomenda Posner, a introdução da análise econômica deve ficar a cargo das universidades e faculdades de direito. 

Por sua vez, a análise econômica em países em desenvolvimento deve levar em consideração o contexto de sua aplicação. Como perspectiva teórica nascida nos países desenvolvidos, a análise econômica preconiza um pano de fundo pacificado em torno de temas como a importância dos direitos de propriedade, liberdade contratual, independência do judiciário, da discricionariedade judicial bem orientada e das limitações do poder do Estado. Aqui é quase como Posner estivesse dizendo: a análise econômica se desenvolveu em economias de mercado sólidas e politicamente liberais. 

Por isso, a análise econômica tem de ser adequada ao contexto em que estas "bases" regulatórias ainda estão em construção. Todavia, para Posner, isso apenas confirma a importância e abrangência da análise econômica e não a sua inviabilidade de ser aplicada no nosso país.

domingo, 4 de novembro de 2012

Justiça e Liberdade Comunicativa. Reflexões em conexão com Hegel.


O resumo abaixo é apenas uma primeira leitura do texto, sujeita à revisão mediante o debate.

HONNETH, Axel. Justicia e Libertad Comunicativa. Reflexiones en conexión con Hegel. In. Crítica del Agravio Moral: patologias de la sociedad contemporânea. Buenos Aires: Faculdade Autonoma Metropolitana, 2009, p. 225-248.

Honneth inicia o texto afirmando que se consolidou no âmbito das teorias da justiça social ou da filosofia política duas posições metodológicas: 

- A. Quanto ao procedimento de fundamentação: a instância de justificação normativa é determinada por um procedimento deliberativo em que os participantes se põem em uma situação real ou fictícia, sob condições de imparcialidade, para determinar os princípios de justiça que irão reger as situações futuras de cooperação.  A imparcialidade do procedimento garantirá que os resultados obtidos sejam aceitáveis como regra a ser invocada por todos os membros da sociedade.

- B. Quanto ao objeto central de Justiça: o procedimento toma por objetivo determinar quais seriam os princípios de justiça para sujeitos que tem como principal interesse a realização dos seus planos de vida da maneira mais autônoma possível. Isso conduz ao entendimento de que a essência da justiça é o gozo de uma liberdade subjetiva mínima e igualmente compartilhada por todos os sujeitos. A justiça social então seriam uma facilitadora igualitária da autonomia individual.

Até aqui pode-se entender claramente que Honneth está lidando com o contexto contemporâneos da teorias da justiça. Primeiro ele está se referindo claramente à Rawls. Além disso, ele mesmo destaca que está lidando com o debate liberalismo/comunitarismo.

Honneth entende que essa concepção hegemônica (liberalismo igualitário, embora ele não o diga expressamente) expressa nesses conceitos fundamentais (procedimento e autonomia individual) diz muito pouco sobre como pode ser garantido a todos os integrantes de uma sociedade a realização da sua liberdade individual. 

Segundo Honneth, algumas premissas tomada como fatos naturais estão implícitas no liberalismo igualitário influenciando, assim, formatação do procedimento de justificação dos princípios de justiça: 

A. A pressuposição de que os atores sociais para realizar suas metas individuais, seus planos de vida, dependem essencialmente dos meios para tal. Meios aqui como instrumentos, bens, objetos capazes de proporcionar a realização dos planos de vida. 

B. Um conceito individualista de liberdade subjetiva: segundo o qual o exercício da liberdade individual tem de depender cada vez menos da interação com os demais participantes da sociedade, ou, pelo menos, ser cada vez menos restringido pela ação dos demais participantes da sociedade.

No entendimento de Honneth esses dois posicionamentos são incapazes ou não representam a melhor forma de conceber a justiça social. Antes de problematizar os pontos acima, Honneth propõe:

1. Analisar o que mudaria na deliberação fictícia ou real se os participantes desejassem guiar-se por um conceito de liberdade individual que não fosse individualista mas comunicativo?

2. Que princípios de justiça poderiam resultar dessa remodelagem?

De maneira clara Honneth enuncia a tese que pretende defender à luz desses dois questionamentos, 

"(...) a suposição de que nesta modificação da situação inicial mudaria a concepção prevalecente de justiça social não apenas em alguns detalhes, mas, sim, em sua composição inteira: as pessoas deliberantes calculariam suas futuras oportunidades de vida não dentro do marco dos espaços disponíveis individualmente, mas as mediriam pela qualidade das relações sociais a esperar; por consequência, sua ideia de justiça social se transladaria do nível dos bens garantidores da liberdade até o nível das mutualidades vinculantes." (grifo nosso, p. 227).

Podemos então notar que para Honneth, o individualismo metodológico é insuficiente. Porém, não a autonomia individual. A justiça social deve preocupar-se antes com a qualidade das relações sociais do que com a distribuição de bens para a realização dos planos de vida. Honneth não está dizendo que o acesso aos bens ou uma distribuição igualitária de bens não é objeto da justiça. Pelo exposto até aqui, ele está apenas se perguntando se o objeto da justiça social não deveria ser a qualidade das relações sociais e não apenas uma distribuição de bens para a realização instrumental dos planos de vida. 

Para dar sustentação ao seu argumento, Honneth estabelece as seguintes etapas:

1. Retomando Hegel, traça um esboço daquelas que seriam as instituições que se ligam mais a um conceito intersubjetivo de liberdade individual. 

2. Exposição das consquencias no âmbito da fundamentação quando se parte de uma conceito comunicativo, intersubjetivista, de liberdade no lugar de um individualista.

3. Demonstrar em que sentido a concepção de justiça que nós temos seria diferente se fosse concebida não como uma facilitadora de uma forma individualista de liberdade, mas de uma forma comunicativa de liberdade. Dessa feita, pretende apontar as implicações na mudança de paradigma: da distribuição igualitária de bens para o reforço da mutualidades.

4. Apontar as consquencias que resulta da mudança de paradigma: a proposta de como compreender que para atender o critério de que o justo é aquilo que beneficia no mesmo grau de liberdade comunicativa dos sujeitos necessário se faz uma pluralização de nossos princípios de justiça, porque estes tenderão a corresponder as particularidades das respectivas relações de comunicação. (grifo nosso).

No que segue tentaremos sintetizar os argumentos de Honneth em cada uma das etapas acima.

Para (1) - Crítica da liberdade subjetiva individualista a partir do reconhecimento como elementos intersubjetivo fundador da liberdade.

A modernidade entendeu que para realizar as exigências da justiça é necessário, num ambiente de pluralidade de metas de vida, permitir ao individuo o máximo de possibilidades de realização de suas metas. Assim, a primeira conclusão normativa foi a de que a liberdade pessoal deve ser media pelo grau de não impedimento da ação de um sujeito na realização de suas metas de vida: "as margens de ação que o ator dispõe para guiar-se por suas preferências são tanto maiores quanto menores forem os impedimentos e restrições que os outros indivíduos venham a lhe impor" (p. 229).

Embora Honneth não diga claramente nessa etapa, a consequencia desse entendimento normativo é fixar, com a ajuda do direito, as margens garantidas pelo Estado em que nem este, nem os demais sujeitos, podem violar no que tange às preferências e metas individuais. Assim, a primeira preocupação das teorias da justiça passa a ser a fixação dos direitos que cada um dos indivíduos tem para poder exercer livre de impedimentos sua liberdade subjetiva individualista.

Todavia nessa visão normativa há um componente excedente de significado trazido à tona por Honneth como uma estrutura implícita à pressuposição normativa do individualismo acima exposto: nessa visão o indivíduo é "exposto como independente de suas contrapartes de interação na realização de sua liberdade" (p.229). Embora não seja automaticamente solipcisita, Honneth argumenta que nessa visão predominou o entendimento de que as vinculações empíricas são, em geral, impedimentos à liberdade.

A partir do conceito individualista de autonomia, as teorias da justiça passam a assumir que: 

a. a criação de condições sociais justas permitirá a realização dos planos de vida de cada um dos indivíduos independentemente dos demais; 

b. a ideia de que a quantidade de bens aumenta a liberdade individual, levando ao isolamento conceitual do sujeito individual.

c. a ideia de que comunidades não eleitas representam uma ameaça ao indivíduo. 

Honneth passa a fazer uma crítica dessas pressuposições a partir de Hegel. A autonomia individual é importante sim. Porém, a ideia de que a liberdade é uma margem de ação discricionária, em que o individuo pode se mover sem impedimentos, "livremente" é uma abstração que encobre o verdadeiro fundamento da liberdade, uma forma de comunicação intersubjetiva. As margens de liberdade não são determinadas por uma justa distribuição de liberdades subjetivas, mas por uma circunstância de reconhecimento entre sujeitos que se consideram livres e iguais. 

No fundamento das liberdades subjetivas não está uma calibração de direitos feita para possibilitar a ação independente de restrição por parte dos outro, mas uma interação entre dois ou mais sujeitos que se reconhecem como livres e iguais. O direito, ao contrário de suas tentativas de fundamentação abstrata, revela por fundamento um carácter relacional e intersubjetivo. As liberdades que ele expressa são fruto de uma forma de comunicação intersubjetiva humana fundada no reconhecimento recíproco. 

O conceito de reconhecimento passa a ser a chave para a critica da autonomia fundada no individualismo em que "realizar a liberdade significa conseguir um aumento do poder de ação ao incrementar-se o conhecimento das faculdades e necessidades próprias mediante a confirmação por parte do outro" (p. 231).

As relações intersubjetivas não representam um obstáculo para a realização da liberdade individual, mas, sim, uma condição da liberdade subjetiva: "o individuo é capaz de realizar a autonomia apenas na medida em que mantenha relação com outros sujeitos, os quais por sua vez possibilitam um reconhecimento recíproco de sua personalidade" (p.231).

Aclarando que o fundamento dos direitos dos indivíduos é o reconhecimento duas críticas podem ser feitas:

1. A própria definição dos direitos individuais é dependente da rede de interações intersubjetivas de reconhecimento recíproco.

2. Os direitos jurídicos são apenas uma parte desse reconhecimento que se estabelece no âmbito social para muito mais do que as relações jurídicas entre os indivíduos e indivíduos e Estado. Ou seja, existem outras formas de mutualidades vinculantes. 

Para (2) - Crítica do procedimento de fundamentação baseado no contratualismo.

Na base das teorias contratualista incide a crítica de (1) qual seja: conceber o individuo participante do contrato como um indivíduo isolado. Honneth nessa parte retoma Hegel no sentido de demonstrar que as teorias contratualistas contradizem nossas intuições básicas quando olhamos para as pressupostas coordenadas da situação inicial de deliberação.

Honneth argumenta que o experimento mental de uma deliberação semelhante a um contrato social só pode cumprir com os seus objetivos normativos se para todos os interessados for previsto uma situação de imparcialidade. Essa situação de imparcialidade é garantida pelo bloqueio posto pelo teórico aos sujeitos que passam a não saber em que posição poderão se encontrar na sociedade o que implica o desconhecimento dos talentos e posições presentes e futuras que poderão ter na elaboração e aplicação do contrato. Com base nisso eles devem exercitar sua racionalidade instrumental por meio de um cálculo de prudência onde escolhem os princípios de justiça que serão mais vantajosos para realização de seus planos de vida. 

Na percepção de Honneth, a partir do reconhecimento não se pode falar nessa situação inicial de imparcialidade, uma vez que os participantes da situação ideal de deliberação tem de ter um conhecimento elementar de suas necessidades de reconhecimento para poderem ser, inclusive, qualificados como seres humanos. 

Ainda que o procedimento pretenda uma total neutralidade, ele não pode ignorar, afirma Honneth, os pressupostos do que se deve considerar como uma característica definidora da pessoa humana: o reconhecimento.

Honneth entende que, ao contrário do individualismo liberal, os sujeitos que adentram a situação de deliberação não podem abrir mão do reconhecimento como elemento antropológico fundamental para as demais interações. Ele está afirmando que, ao contrário do que liberal diria, o individuo não está plenamente constituído como um átomo isolado dos demais participantes. Sendo assim, antes de se perguntar sobre quais direitos pretende usufruir ou quais bens pretende ter acesso ele se indaga sobre as possibilidades de ser reconhecido pelo os demais membros da interação. Ao nosso ver, Honneth está dizendo que existem perguntais ainda mais fundamentais do ponto de vista antropológico que mesmo a máxima neutralidade do experimento mental da situação ideal de deliberação não pode anular. 

De posso dessas indagações, há consequencias sobre que princípios de justiça seriam escolhidos pelas partes. Ao invés de optarem pela distribuição de direitos e bens as partes iriam antes de mais nada privilegiar a proteção às formas de reconhecimento que entendem necessárias socialmente. Para Honneth a pretensão de reconhecimento recíproco está tão ancorada em nossa praxis social que pouco plausível não fazê-la necessária também nos procedimentos garantidores da justiça na situação ideal de deliberação. 

Em nosso entendimento, a crítica que Honneth aponta em relação ao procedimento de fundamentação não é, em si, uma crítica ao device justificatório, mas, antes, a uma parte dele que é a pretensão de imparcialidade que ele afirma ter. Todavia, até mesmo em relação a este aspecto, ele não está negando que o procedimento foi imparcial, mas que os resultados desse device são remodelados a medida em que os participantes sabem que é mais fundamental do que distribuir bens ou direitos garantir o reconhecimento recíproco. 

É como se Honneth estivesse apenas dizendo que ao celebrar um contrato, antes de peguntarmos sobre o objeto do contrato, temos de nos perguntar sobre a capacidade das partes em contratar. Quando fazemos isso, iremos ver que é importante garantir iguais condições de contratação. Essas iguais condições de contratação envolvem uma série de capacidades e necessidades que são anteriores ao próprio contrato e estão inseridas no âmbito de uma série de práticas sociais de reconhecimento.

Para (3) - Qual é o objeto da justiça? As relações de comunicativas de reconhecimento. 

Uma vez que a experiência do reconhecimento é o elemento fundador da liberdade, é preciso assegurá-la, pois: "a liberdade pessoal dos indivíduos é assegurada e fomentada na medida em que este dispõe de esferas comunicativas de auto-realização nas quais podem alcançar um maior poder de ação mediante reconhecimento recíproco".

De maneira sucinta Honneth argumenta que o reconhecimento é uma categoria central para entender e realizar a justiça. Ele está presente (p. 236): 

(a) Nas experiências históricas e sociológicas. Genocídio, Massacres étnicos, testemunho dos movimentos sociais.

(b) Na moral. Por meio do sentimento de injustiça ao não ser reconhecido em suas capacidades e necessidades.

(c) No desenvolvimento psicológico e na psicanálise, que veem no reconhecimento um elemento fundamental da aquisição de autonomia individual. 


De posse desse diagnóstico que sabemos estar expresso ao longo de outras obras (A luta pelo reconhecimento, principalmente), Honneth propõe uma mudança de paradigma para as teorias da justiça: ao invés de centrar nas liberdades subjetivas de ação, o objeto da justiça deve ser as esferas de comunicação sociais (p.236).  Isto é, as esferas de reconhecimento recíproco. 

A partir desse paradigma, as liberdades jurídicas são apenas uma forma de reconhecimento dentre outras. Não representam uma forma de agir discricionário, mas, antes, são resultado da interação recíproca entre sujeitos que se reconhecem como livres e iguais. 

Com isso se vê que: 

"sobe a perspectiva em que devem se garantir a autonomia individual de todos os integrantes da sociedade por igual, a estrutura e qualidade das relações sociais de reconhecimento constituem o campo de aplicação central dos princípios da justiça" (p. 237). 

Entretanto, Honneth chama atenção para o fato de que tal pressuposição normativa exige que se esclareça a qualidade, natureza, status, de tais relações de reconhecimento. As relações de reconhecimento não são meras interações arbitrárias ou contingentes entre os indivíduos. Honneth entende que se deve buscar no reconhecimento 

"um padrão de comunicação com relativa estabilidade que facilite aos participantes de maneira recíproca uma experiência de reconhecimento de determinadas capacidades e necessidades. Este padrão só é possível se os participantes se orientam em comum por normas morais cuja validade os estimula a respeitar e fomentar no respectivo outro os correspondentes traços de personalidade" (p. 237)

Na proposta de Honneth as relações de reconhecimento são formas de reciprocidade vinculantes nas quais os deveres perderam seu caráter restritivo proibitivo para converter-se em elementos naturais de uma práxis de ação exercitada habitualmente (p.237).

Confesso que entendo essa proposição como obscura e ambígua. Posso ver que Honneth está tentando mapear as estruturas mais profundas das relações sociais que estão inscritas nas prática cotidiana da interação recíproca proporcionada pelo reconhecimento. Mas não está clara como se dá essa passagem dos deveres negativos para os deveres constitutivos das relações de reconhecimento. Também não está claro como se olha para a praxis social em sua identificação. Como entender que ela as práticas consolidadas de reconhecimento não podem ser elas mesmas frutos de práticas de dominação não tematizadas que acabam por ser incorporadas num trato comunicativo distorcido?

Mas para além dessas dúvidas que podem ser esclarecidas com a leitura de outros textos, continuemos.

Honneth dá como exemplo desse tipo de relação a amizade. Segundo ele, uma relação de amizade revela o exercício comum de uma prática recíproca de reconhecimento. A amizade é mediada por normas morais que estimulam a ambos a promover o bem estar do respectivo outro. A Amizade é forma de mutualidade vinculante que proporciona uma experiência recíproca de reconhecimento porque os amigos podem ver supridas suas necessidades e desejos de uma maneira tal que a nível individual lhes prove um nível maior de poder de ação (p. 238).

Aqui faço outra observação, esse ponto é problemático ou merece ser problematizado: 1. Noção de amizade aristotélica? 2. Quais são os desejos necessidades que se veem supridos reciprocamente? 3.Tal satisfação se dá apenas mediante o reconhecimento? 4. O que significa ampliar no nível individual o poder de ação?

Em conclusão a este ponto, Honneth levanta como tais relações de reconhecimento podem ser objetos da teoria da justiça. Contemporaneamente dirigimos nossas demandas de justiça para o Estado. No âmbito do Estado democrático de direito, sua tarefa pode ser, ao invés apenas do asseguramento da igual liberdade de ação subjetiva, a proteção e fomento de relações intersubjetivas das mutualidades vinculantes. Isto é, o fomento e proteção das relações de reconhecimento recíproco.

Para (4) - O pluralismo interdependente do reconhecimento.

Honneth sugere ficarmos apenas com a metodologia hegeliana, abandonando os aspectos metafísicos da filosofia do espírito. Honneth entende como importante para a sua teoria a proposta de conectar as esferas de reconhecimento que podem ser compreendidas como constitutivas para as formas atuais de integração social.

O primeiro passo nesse intento é reconhecer uma certa concepção de progresso. Olhando para Filosofia do Direito de Hegel, Honneth extrai como ideia fundamental:

“a essência do que constitui a autonomia do indivíduo não é, por si mesma, algo que está dado de uma vez por todas, mas que se encontra sujeita as mudanças históricas; pois entre os graus  de diferenciação da sociedade e a liberdade individual existe uma relação de condicionamento, na medida da divisão em âmbitos de funções sociais aumentam também as dimensões em que o individuo aprende a perceber em si mesmo as dimensões da autorrealização”.

Com isso Honneth quer dizer que existem esferas distintas de reconhecimento recíproco que são determinadas pelo grau de complexidade em que se encontra a sociedade em que vive o indivíduo.

Dessa feita, uma teoria da justiça deveria garantir a existência daquelas relações de reconhecimento que permitem aos indivíduos alcançar, nas respectivas condições sociais dadas, um máximo de autonomia individual na forma de mutualidades vinculantes (p. 240).

Tal formulação, apesar suas pretensões não idealistas, não prescinde, segundo Honneth, da ideia de progresso, pois:

“porque as relações de reconhecimento duradouras e, por assim dizer, institucionalizadas, que impregnam a ordem social atual, não podem compreender-se justificadamente como magnitudes de referencia de uma teoria reformulada da justiça senão se consideradas como superiores em termos morais às formas de reconhecimento anteriores”.

Assim, as forma de reconhecimento institucionalizadas para Honneth são superiores às formas de reconhecimento não institucionalizadas. Mas não está claro o que é uma forma de reconhecimento institucionalizada. O que é o institucionalizado? Uma prática social estável e contínua? A migração dessas práticas para as instituições?

Honneth diz que sem esse sentido de progresso sua teoria cometeria dois equívocos: 1. Haveria o risco de converter a respectiva ordem de reconhecimento em um fato moral; 2. A investigação das esferas comunicativas que devem ser objeto da teoria da justiça se restringiria a ordem social existente de maneira meramente empírica.

Com isso temos o seguinte, ao meu ver: Honneth quer acentuar que o objeto da teoria da justiça segundo o paradigma do reconhecimento são as estruturas normativas fundamentais necessárias à autorrealização do indivíduo. Tais estruturas devem ser objeto da teoria da justiça mesmo que não estejam presentes em um dado contexto concreto. Isso porque não se trata apenas de um fomento ou proteção daqueles elementos meramente consolidados de maneira positiva numa dada comunidade.

Esclareço. Não é objeto da teoria da justiça, nesse caso, a mera justificação da realidade fática estabelecida positivamente do ponto de visa sociológico. As estruturas do reconhecimento devem ser fomentadas e protegidas mesmo quando não presentes em uma dada comunidade específica. Esse é o elemento potencialmente crítico dela. Se as estruturas do reconhecimento fossem apenas aquelas que são dadas em uma dada comunidade, haveria apenas a justificação dos contextos locais. Agora, Honneth só pode manter esse ponto de vista crítico porque seu mepeamento das estruturas fundamentais do reconhecimento são fortemente apoiadas numa antropologia universal que vê uma série de elementos necessários à realização de uma vida boa, assim como é reconstruída à luz dos elementos históricos presentes no desenvolvimento da modernidade.

Por outro lado, acho que seria melhor afirmar que sua teoria não pode prescindir de um caráter dinâmico/imanente. Entendo que Honneth quer dizer que as estruturas do reconhecimento podem ser mudadas ou forçadas a mudar em conformidade com as novas exigências para a realização da liberdade individual formatadas pelas novas condições sociais. Esse seria o lado dinâmico que uma teoria do reconhecimento não poderia deixar de ter. Pelo aspecto da imanência, com essa passagem Honneth está nos dizendo que as rastrear aquelas que seriam as estruturas básicas do reconhecimento a serem reconhecidas por uma teoria da justiça implica em afirmar que é necessário reconstruir quais seriam as pressuposições normativas mais elementares das estruturas básicas do reconhecimento mesmo quando estas não estão positivamente institucionalizadas numa sociedade.

Por último, reconhecer as institucionalizadas como superiores se liga duplamente as estas duas características. Pelo lado da dinâmica o estágio atual é um estágio de superação do anterior, mas que pode ser, imanentemente superado por outro estágio ou, melhor do que superação, conduzir a uma outra necessidade de reconhecimento. Essa superioridade do estágio atual é, no fim, um ponto de vista em que se pode ver o desenvolvimento das estruturas básicas do reconhecimento.  


Aproximando-se da conclusão, Honneth formula sua concepção de justiça:

1.    Existem pelos menos três esferas de reconhecimento (mutualidades): esfera da amizade e amor; esfera do direito; esfera do trabalho/estima social.
2.    Uma teoria da justiça tem de levar em conta as normatividades internas de cada esfera, sendo uma facilitadora da participação social em tais âmbitos.
3.    Para contemplar todos estes âmbitos não basta apenas um princípio igualitário distributivo.
4.    O princípio que emerge é um que estabelece que a autonomia individual deve ser realizada nos três âmbitos sendo cada um deles um facilitador interdependente do outro.
5.    Honneth propõe que em cada âmbito haja um princípio que os três, pelo menos, sejam unidas naquilo que for necessário à ampliação da autonomia individual compreendida intersubjetivamente por meio do reconhecimento.

Por último assinala que não se trata apenas de preservar a autonomia de cada uma das esferas, protegendo-as da ingerência da outra. Isso seria apenas uma tarefa conservadora em sua visão.

Antes essa concepção deve sempre ser guiada por um sentido reformista que olha para um futuro que pode ser realizado com o melhoramento das condições atuais.

Isso porque todos os princípios possíveis de serem estabelecidos possuem tanto um (1) excedente de validade, no meu entendimento ver uma capacidade de projetar idealidades capazes de serem apropriadas pelos indivíduos em seus contextos, (2) excedentes semânticos, fundamentando cada vez mais as exigências por justiça em nome a autonomia individual.

Quanto a este último aspecto, arrisco a dizer, trata-se da tensão entre faticidade e validade exposta por Habermas agora pincelada no paradigma do reconhecimento.

segunda-feira, 2 de julho de 2012


Parte (3) 
 

Gadamer inicia sua fala sobre a solidariedade lembrando-nos que quando olhamos suas manifestações nota-se pelo menos de duas maneiras: às vezes declaramos que temos solidariedade ou às vezes sentimos a solidariedade. Experiências trágicas como a vivida por Gadamer e seus contemporâneos também possibilitam o desenvolvimento de uma forma de manifestação da solidariedade. Na guerra e nas experiências cruéis surgem atos e sentimentos de solidariedade. Mas o que nós queremos dizer com a palavra solidariedade, pergunta-se Gadamer. Da etimologia da palavra solidariedade, do latim solidum que também expressava o soldo (pagamento), Gadamer nos fala que a solidariedade é um valor, uma virtude, que conta por si só, que possui um valor intrínseco. Ela é genuína e expressa uma autentica e fiel inseparabilidade de ser o mesmo ainda que, quando em verdade, os interesses e as situações da vida nos tentem a abandonar a solidariedade e retroceder no bem estar do Outro.
Podemos notar que a solidariedade é aquela rede de confiança em que uma comunidade se estabelece quando aqueles critérios, análogos da amizade, são parte da experiência hermenêutica das pessoas no plano ético. A solidariedade não é a mesma virtude que a amizade, mas, também é desde sempre dada no plano da práxis e passa pelos elementos do estar-em-casa, do amor-próprio e do viver-com-outros. Sua diferença em relação à amizade, até aqui, está no apelo ao comum em situações de crise como forma de demonstrar que existem elementos compartilhados que podem ser trazidos à tona como forma de sanar as situações de crise. O recorrer à solidariedade é demonstrado por Gadamer quando ele exemplifica que quando se declara estar em solidariedade, seja livremente ou sob coação, há uma renúncia dos próprios interesses e preferências. Outro exemplo que Gadamer dá é a renuncia que se faz em defesa de uma ideia ou pensamento em nome da solidariedade[1].
Solidariedade é uma virtude, um valor, que preserva para Gadamer um duplo significado: ela pode ser vista em parte como benefício e em parte como privação. Essa ambiguidade preserva à solidariedade uma ampla possibilidade de ser trazida à consciência das pessoas nas suas interações. Como elemento em que as pessoas podem depositar sua confiança, a solidariedade é também um valor capaz de estabelecer a crítica e a correção da política, da eficácia sociológica das leis. A partir da solidariedade, Gadamer demonstra como as lutas partidárias pelo interesse autorreferencial dos partidos perde o sentido do que é realmente importante do ponto de vista ético. A política tem de se ligar ao sentido comunitário que é expresso por meio da autentica solidariedade.
A solidariedade também tem uma outra dimensão abordada pro Gadamer: a reivindicação por ela. Gadamer diz que a solidariedade real depende da declaração dos indivíduos e da ação deles por ela. Isso está em conformidade com o que pudemos ver sobre a ética e a práxis em Gadamer. Sendo a solidariedade uma virtude, a ação pela qual ela se desenvolve e se modifica demonstra que compreendê-la exige a sua aplicação, como nas demais experiências hermenêuticas. No entanto ela preserva sua peculiaridade e um traço bastante interessante que na análise da amizade Gadamer não havia tratado: a exigibilidade. Gadamer diz que a solidariedade é uma promessa de pagamento de amizade, que é limitada, como tudo o mais, assim como clama por uma completa dedicação de nossa boa vontade. Mas como assim uma promessa de pagamento de amizade? Não é a amizade um valor que não pode ser negociado tal qual um bem? Não vimos que a amizade não é sujeita ao decisionismo das pessoas?
A solidariedade é uma promessa de pagamento de amizade não porque a amizade é um negociável no mercado, mas porque as pessoas podem apelar por meio dela aos elementos constitutivos da amizade. A solidariedade passa a ser um valor que permite a ampliação do amor-próprio, da conciliação de si mesmo com o outro, a nosso ver, para além das barreiras impostas pelas limitações históricas. Isso não quer dizer que a solidariedade é ahistórica ou que não se dá no plano de experiência hermenêutica. Não se trata disso. Tal quais as demais experiências ela é situada e enraizada na temporalidade. O que queremos afirmar é que é possível apelar à solidariedade para que os elementos do estar-com-outros possam ser acessíveis até mesmo àqueles com que não estamos ou não compartilhamos de maneira direta um mesmo solo comum. Evidentemente que essa exigibilidade, possibilidade de se apelar à solidariedade e fazê-la concreta, por isso exigível do outro, só pode se dar quando os mesmos elementos da reconciliação de si no outro se desenvolvem. Porém, um pouco mais a frente, a solidariedade exige que essa reconciliação se manifeste no plano da ação concreta, como não poderia ser diferente, tendo como telos o bem-estar do outro. Essa ação, pensamos, vai um pouco mais além, pois ela se manifesta também no domínio do político, pois a exigibilidade da solidariedade, do cumprimento do pagamento da promessa, demanda que a comunidade política possa estar amparada por instituições capazes de fazê-las concretas. Podemos falar então que a solidariedade é uma virtude política que traz ao plano da comunidade uma conciliação dela mesma para os seus cidadãos.
Podemos pensar a solidariedade em analogia como a amizade, experiência do tu e problema hermenêutico na mesma linha da segunda parte de nosso trabalho.
(a)  Um primeiro nível de solidariedade: minimalista. No plano do político, os vínculos que os cidadãos estabelecem a partir da observação do comportamento da ação de uns dos outros para a consecução de seus interesses é tipicamente próprio de uma concepção liberal de política em que os cidadãos só conseguem se enxergar como agentes privados que perseguem seus próprios interesses. Esse tipo de experiência política ignora o Outro em várias de suas manifestações, não permite que os cidadãos possam se ver como uma comunidade que se autodetermina e corrompe tanto as bases materiais da vida em comum com as bases do autorrespeito. A comunidade não consegue, assim, perceber que as Instituições políticas podem fazer parte do seu autoconhecimento e aprendizado ao longo da história. A sua tradição política e jurídica é apenas o objeto para a consecução de interesses e práxis para o bem comum se dissipa na luta dos cidadãos atomizados e dos partidos que se tornam representações de lobbys.

(b)  O segundo nível da experiência da solidariedade poderia ser aquela em que os laços dos cidadãos são reforçados por uma consciência histórica que se manifesta na outorga total ao macro-sujeito Estado da determinação dos valores e condução da determinação da experiência do outro. Uma autodeterminação comunitária que se entenda suficientemente reflexiva ao ponto de suprimir a necessidade de autocompreensão dos cidadãos por meio da experiência hermenêutica passa a ser a encarnação política da consciência histórica. O resultado disso é a perda da autonomia e a supressão do Outro no plano da política. A este não é dada mais a chance de conciliar consigo mesmo. É a vontade da comunidade que se impõe a ele de forma a dissipar a legitimação de suas próprias pretensões. Não queremos parecer exagerados, mas as experiências totalitárias de Estado parecem ser o segundo nível dessa manifestação histórica da solidariedade. Num nível um pouco menos hard o Estado de bem-estar-social que se torna paternalista também pode deixar fluir essa solidariedade não autentica.

(c)   Por último, o nível da solidariedade autentica. A solidariedade autentica, entendemos, deve ser pensada por meio da consciência histórica efeitual. No âmbito do político, a solidariedade autentica permite que a experiência tu seja uma experiência de abertura ao Outro. Não se deve passar por cima de suas pretensões. Ela permite uma mútua abertura no plano da ética e do político, capazes de promover a compreensão mútua entre os cidadãos. O sentido de renuncia aos interesses e preferências tal qual é pensado no apelo à solidariedade guarda uma analogia com o reconhecimento de que devo estar disposto a deixar valer em mim algo contra mim, ainda que não haja nenhum outro que vá fazer valer por mim. Não queremos parecer exagerados, mas apenas o Estado democrático de direito é capaz de satisfazer no plano do político as exigências da experiência autentica da solidariedade. Uma política exercida de maneira participativa e suficientemente discursiva permite que o diálogo se estabeleça entre os cidadãos que poderão fazer suas exigências pelo cumprimento da promessa de pagamento de amizade por meio do diálogo. Por isso o Estado democrático de direito é importante, pois ele assegura, por meio da linguagem dos direitos, a autonomia dos cidadãos que podem tanto vir a falar (direitos de participação) como deixar falar (direitos subjetivos de ação). No plano do problema hermenêutico, o Estado democrático de direito está sempre aberto apreensão histórica de suas instituições. Por meio do direito, os atuais cidadãos e representantes podem sempre interpretar o legado deixado pelo conjunto das escolhas e decisões políticas que foram tomadas no passado. Eles podem avaliá-las e compreendê-las à luz de suas situações históricas atuais.

Em (c) podemos falar de uma solidariedade autentica, pois a autodeterminação democrática permite que a experiência hermenêutica não seja suprimida no âmbito da práxis dos cidadãos, pois ela respeita o Outro e a conciliação de si no outro. Por outro lado, em (c) fica em aberto sempre a possibilidade do sentido crítico que Gadamer quis dar a solidariedade quando disse que ela pode nos mostrar como a política se afasta do que é comum e sólido para as pessoas. No Estado democrático de direito, em suas atuais formas, as pessoas tem a chance de falar e ouvir de tal forma com que se possa demonstrar esse sentido de perda da ligação dos anseios da comunidade no plano do político. Esperamos não ter feito uma homologia demasiado grosseria. O que pretendemos foi apenas demonstrar que é possível pensar o político a partir da hermenêutica filosófica de Gadamer. Ao longo desse trabalho também passamos pela experiência hermenêutica de interpretar seus aclaramentos. Para nós parece que é bastante razoável pensar que as manifestações da experiência do tu e do problema hermenêutico da conciliação com a tradição também podem ser vistos, por analogia, aos problemas da ética e da política contemporâneas.


[1] GADAMER, H. G.  Friendship and Solidarity. Research in Phenemonology, Leiden, vol. 39, issue 1, 2009, p. 3-12. 

Parte (2)

            Em 1990 Gadamer chamou a atenção para o fato de que os conflitos armados entre os povos ainda era, e é, algo preocupante. Diante da multiplicidade de povos que querem se afirmar belicamente uns aos outros, Gadamer expressou uma preocupação com uma catástrofe de proporções globais. A técnica e o progresso científico só tornaram ainda mais devastadoras as possibilidades de um conflito armado entre partes que querem se afirmar umas perante as outras hierarquicamente. Como um intelectual e filósofo sério ele se perguntou sobre como é possível salvar a humanidade de si mesma e desenvolver um espírito comunitário, a solidariedade necessária para a vontade de viver e sobreviver[1]. Nessa parte queremos demonstrar como a amizade pode responder num primeiro nível a esse desafio de possibilitar a compreensão entre os indivíduos e suas comunidades.
            Gadamer inicia sua compreensão da amizade demonstrando que hoje ela se tornou um termo que muitas vezes pretende cobrir uma vasta gama de fenômenos. Na nossa tradição cultural a amizade é um tema que vem desde os gregos.  Mas o que é a verdadeira amizade? E o que significa ser amigo num mundo de instituições compartilhadas e mercados, num mundo de diversidade de conflitos e entendimentos que tornam a ação comunitária possível? Ironicamente Gadamer agradece ao modo como nossa sociedade está anonimamente organizada para nos desafiar uma pergunta instigante: quem é o vizinho ao lado com quem vivemos? Será que perdemos o sentido de uma pertença a uma comunidade em que seja importante conhecer o nome das pessoas, compartilhar hábitos, ter tranquilidade?[2]
            Para saber no que consiste a verdadeira amizade Gadamer vai descrevendo uma série de fenômenos sob aos quais as pessoas costumam atribuir amizade. Com a referência aos diálogos de Sócrates, Gadamer aponta que seus interlocutores não podem conhecer mais do que uma amizade infantil. A ilustração serve para demonstrar que não há uma relação de reciprocidade, mas apenas uma competição pela atenção de Sócrates que, aparentemente, se diverte com a disputa. A amizade então não pode ser fundada no interesse, tampouco na disputa por atenção ou em relações assimétricas entre os indivíduos[3]. Será então que são os laços em comum determinados por aquilo que nós identificamos no outro como sendo nosso o que constitui a amizade? A familiaridade dos traços em comum, os mesmos gostos, histórias, traços em comum. Ao contrário do que se poderia esperar, Gadamer expõe que são as diferenças, muito mais do que as semelhanças, os elementos que aparentemente constituem a amizade.
            A dificuldade em determinar o que é a amizade percorre a história das ideias na filosofia. Todavia, para Gadamer, a verdadeira amizade é algo escondido e não algo que se pode estar tão perto. A amizade não pode ser determinada pelo que é igualmente encontrado nas pessoas ou pela admiração recíproca pelas diferenças uns dos outros. Com diversos exemplos que ilustra a discussão, como as crianças em torno de Sócrates ou o diálogo deste com Alcebíades, Gadamer quer demonstrar que a amizade não é um conceito abstrato que pode ser dividido em várias subespécies. Tampouco a verdadeira amizade pode ser fruto dos desejos, felicidades, prazeres, vantagens, negócios, etc. A verdadeira amizade não é um fruto da identidade entre os indivíduos, tampouco de um cálculo racional de um agente prudente. Gadamer nos lembra que o sentido originário da palavra Oikeion, hoje base para a palavra economia, era o termo usado por Sócrates para designar uma forma mais autêntica de socialização entre os indivíduos “the house-like/domestic” ou “the home-like/native”. O que nos é familiar? Isso é o constitutivo da amizade que Gadamer busca[4].
            Gadamer nos convida a perguntar o que hoje poderia ser considerado como nosso Oikeion? O estar-em-casa (at-home) do qual não se pode falar, mas podemos perceber quando falamos de nossa casa ou da nossa terra natal. A verdadeira amizade parte como primeiro pressuposto desse sentido de familiaridade que é tão profundo: pensar numa pertença não problematizada a uma tradição, uma pertença de não estranhamento de uma total integridade com a comunidade. A terra-natal é algo imemorial, apesar de não sabermos o que é que pode estabelecer tais vínculos tão profundos entre as pessoas, mas a pertença a uma terra natal e origem comuns representa uma conexão que Gadamer considera como um tipo de comunidade, uma modalidade de solidariedade que não requer que eu declare ser solidário, pois ela já é solidária em si e para si mesma. Mas qual é o segredo ainda não revelado dessa conexão autentica e primordial? Até aqui, pelo menos, foi possível acompanhar Gadamer no sentido de que uma amizade autentica e uma solidariedade autentica partem desse primeiro sentido de pertença a um locus específico no tempo e no espaço, na concretude das relações mais primordiais que os indivíduos podem desenvolver sem necessariamente terem de problematizar ou exercer uma reflexão racional que sempre chega depois ou perde a imediatez da compreensão hermenêutica.
            Gadamer novamente retoma os gregos para responder a pergunta acima. Existe uma palavra que é de fundamental importância para a compreensão da amizade: Philautia, “amor-próprio”. No amor-próprio nós trazemos à tona a verdadeira condição para todos os possíveis laços com os outros e o comprometimento para com nós mesmos. Aqui o amor-próprio não é a preservação egoística de nós mesmos, não é apenas pensar em nós mesmos e não no que o outro é ou o que é para o outro. Não é essa concepção reducionista de amor-próprio que Gadamer está resgatando dos gregos. O que Gadamer quer trazer à nossa consciência é o amor-próprio que é autêntico porque ele nos reconcilia nos tornando um com nós mesmos. Se nós pretendemos ser amigos, se nós pretendemos poder amar ou desenvolver laços de solidariedade,  é preciso trazer à tona o amor-próprio que nos permite ser um com nós mesmos[5]. Os laços profundos são desenvolvidos quando podemos nos conciliar em nossa individualidade com o outro, a experiência da alteridade tem de necessariamente fazer com que eu possa me abrir hermeneuticamente.
            Com o estar-em-casa Gadamer, entendemos, quis demonstrar como os laços de amizade são situados historicamente, por isso a necessidade de nos lembrar do sentido de pertença a uma dada comunidade.  Já com o amor-próprio Gadamer está tentando nos dizer que apenas a experiência da alteridade em que o nosso eu se abre para o outro e se reconcilia consigo mesmo é possibilitador da fundação de laços profundos de amizade, amor e solidariedade. Com o estar-em-casa estamos situados, com o amor-próprio sabemos como desenvolvemos os laços. Agora, com a experiência de viver-em-conjunto no mesmo estar-em-casa nós podemos deixar acontecer o amor-próprio. Com o viver-em-conjunto é possível desenvolver o amor-próprio no sentido dado por Gadamer.
            Eis então que voltamos à pergunta sobre o que é a verdadeira amizade. Ao viver em conjunto nós partilhamos significados, nós construímos amizades. Mas, o que funda essas amizades no seu sentido mais primordial, não é a partilha de bens comuns ou laços comuns, ou traços e identidades comuns[6]. Não é a unidade do self constituída por meio da reunião de vários selfs porque eles compartilham e identificam uns nos outros as mesmas coisas. Antes, a reconciliação consigo mesmo que o amor-próprio traz só é possível na experiência da alteridade, na experiência com o outro. Gadamer nos diz que a verdadeira amizade deve existir em primeiro lugar e acima de tudo consigo mesmo. O que é existir para consigo mesmo? Significa que a amizade verdadeira exige que o amor-próprio possa se desenvolver e para que o amor-próprio possa se desenvolver a experiência do outro é primordial. Isso é necessário para que possamos ter verdadeiros laços para com os outros e com os outros.
            A reconciliação consigo mesmo é possível por meio da experiência da alteridade, por isso o Outro é fundamental para que laços genuínos de amizade possam ser criados. Os laços, vínculos ou ligações (Verbunden) com o Outro ou para com o Outro criam o sentido de obrigatório (Verbindliches). A experiência da alteridade é tão importante que Gadamer usa o exemplo da resistência dos gregos aos persas como uma guerra em prol da mantença dessa experiência de individualidade-alteridade contra um império que ameaçava suprimir como de forma niveladora as experiências de liberdade e modos de vida dos gregos[7]. Nesse exemplo vemos que o dialogo desenvolvido por Gadamer conosco mostra claramente que a estar-em-casa, amor-próprio e viver-em-conjunto são experiências hermenêuticas ao mesmo tempo situadas historicamente e, justamente por isso, universais, porque entanto experiências ocorrem para todos os seres que são necessariamente históricos. A violência e o domínio estão justamente na impossibilidade de se desenvolver esses elementos da vida concreta do ser que é situado na história e no mundo.       
            A verdadeira amizade é desenvolvida quando se está-com-outro. Ela permite que possamos nos conhecer a nós mesmos nos outros e que os outros se reconheçam eles mesmos em nós. A amizade é a virtude capaz de canalizar esse desenvolvimento hermenêutico da reconciliação do ser consigo mesmo no outro.  Por ser um desenvolvimento da experiência hermenêutica, a amizade não é possuída como um bem. Não se tem uma amizade. Ela não é disponível enquanto regra da tekne. A amizade tem de ser compreendida à luz do primado da ética tal como argumentamos na primeira parte desse trabalho. A verdadeira amizade é situada na práxis, na atuação da ação dos sujeitos que procuraram se reconciliar com a sua tradição e com os outros. Por isso Gadamer retoma o sentido dado por Aristóteles de amizade: Arete. A verdadeira amizade é best-ness, algo que não pode ser ampliada mais do que ela é, isso porque ela é dada na experiência hermenêutica dos indivíduos situados historicamente.
            Gadamer nos diz que significado profundo da amizade, que também é autoconhecimento, é que nunca se reconhece os preconceitos de seu próprio amor-próprio, mesmo quando se acredita ser um amigo correto do Outro. Por isso ele indaga sobre o que é ser verdadeiramente um amigo? Como compreender isso, uma vez a unidade consigo mesmo é também uma pré-condição para ser um amigo que é correto com o outro? No nosso entendimento essa é uma experiência histórica e prática.  A conciliação consigo mesmo é sempre um estar-com-outros que por sua vez estão-conosco, mas, tanto nós mesmos, quanto os outros, estamos em constante mudança da compreensão recíproca de nossos seres. Por isso é uma ilusão pensar que a conciliação consigo mesmo no outro é algo acabado ou dado uma única vez no tempo e no espaço da concretude histórica.
No plano da práxis, eu só posso me conciliar comigo mesmo e ser uma bom amigo ao mesmo tempo, pois minha ação está ligada ao fim que é estar com os Outros de tal forma que eu possa estar comigo mesmo. Gadamer nos fala então que a condição da conciliação e da correção de ser um amigo autêntico não tem como abrir mão da estrutura intersubjetiva da amizade. Por isso a amizade não é um bem que pode ser possuído. A estrutura da amizade é um estar-com-outros que pode ser identificado na variabilidade de fenômenos que conhecemos como amizade em nossas interações cotidianas. Com a ajuda da analogia desenvolvida pelos gregos, Gadamer passa a comparar as várias manifestações da amizade exemplificadas por ele mesmo ao longo de sua fala. Parece que seu intuito é mostrar como nas várias manifestações de amizade, mesmo aquela que não são autênticas no sentido mais rigoroso, estão presentes os elementos da estrutura fundamental de estar-com-outros.  
Antes de passar ao ultimo ponto de nosso trabalho, a solidariedade, gostaríamos apenas de propor aqui uma certa consideração que pretendemos investigar mais aprofundadamente. Na primeira parte do nosso trabalho destacamos como a ética é importante para Gadamer no sentido de possibilitar e experiência hermenêutica num nível mais fundamental. Por isso a compreensão de que o problema hermenêutico da conciliação com a tradição é antes de tudo um problema que tem de ser investigado a partir da aplicação. Em seguida foi retomado como o problema hermenêutico se desenvolve na experiência hermenêutica do tu, na qual Gadamer vê pelo menos três formas de manifestação. Nesse ponto podemos fazer nossa observação: cada uma das três etapas de experiência do tu, assim como sua compreensão análoga para a compreensão do problema hermenêutico, são, ceteris paribus, análogas a compreensão de Gadamer sobre a amizade.
(a)   A amizade autentica não pode ser fundada em traços comuns de identidade, compartilhados por conta de sua manifestação recorrente entre os indivíduos, porque ela só pode revelar aquele primeiro momento da experiência do tu que se baseia no conhecimento da regularidade das ações humanas como fator determinante da compreensão das relações humanas. Aqui a amizade se torna um objeto, perde o seu valor e passa a ser reificada tal qual se faz com a tradição quando se pretende pensá-la apenas do mesmo modo que as ciências naturais.

(b)  A amizade autentica não pode ser fundada unicamente no sentido de pertença a uma dada comunidade histórica concreta. A pertença a uma determinada terra-natal do qual nós desde já estamos inseridos e familiarizados sem a possibilidade de reconciliação de nós mesmos com nos outros, pela experiência da alteridade, nos torna de certa forma apenas influenciados pelos valores que são compartilhados pela comunidade sem que necessariamente haja uma abertura de nós mesmos. Essa forma de amizade, em que se opera um nivelamento, se dá quando o sentido de individualização se dissipa no macro-sujeito comunidade. No encontramos desde sempre em um at home, mas não podemos nos desligar do sentido de abertura proporcionado pelo amor-próprio e pelo viver-com-outros. Esse desenvolvimento não autentico da amizade se dá no mesmo sentido do nivelamento da tradição da consciência histórica que se apropria do passado esquecendo ela mesma de sua condição limitada, assim como das experiências de reconhecimento que perdem a imediaticidade da compreensão do outro por meio da hiper-reflexão que empreendem.

(c)   A amizade autentica só é possível quando são conciliadas as condições da terra-natal (situação histórica determinada), amor-próprio (reconciliar-se consigo mesmo no outro) e estar-com-outros (experiência que possibilita a reconciliação de si mesmo no outro).  Esse é a mesma modalidade de experiência com o tu que Gadamer desenvolve como a verdadeira experiência hermenêutica. A amizade autentica é no plano da ética a realização da consciência histórica efeitual que se dá na experiência do tu e da conciliação com a tradição. A amizade autentica é no plano da práxis uma abertura ao outro em que reconheço que devo estar disposto a deixar valer em mim algo contra mim, ainda que não haja nenhum outro que vá fazer valer contra mim. Esse é o sentido da conciliação consigo mesmo no outro. É poder permitir que meu ser possa coexistir com o ser dos outros porque eu pude entender como o ser dos outros o é e como eu posso vir a ser com eles.    
           



[1] GADAMER, H. G. La diversidade de las lenguas y la compreensión del mundo. IN Arte y verdade de la palabra. Traducción de José Francisco Zúñiga García.  Paidós: Barcelona, 1993, p. 111-112.
[2] GADAMER, H. G.  Friendship and Solidarity. Research in Phenemonology, Leiden, vol. 39, issue 1, 2009, p. 3-12.
[3] Id., ibidem.
[4] GADAMER, H. G. Friendship and Solidarity. Research in Phenemonology, Leiden, vol. 39, issue 1, 2009, p. 3-12.
[5] Id., ibidem.
[6] Nesse sentido, o pensamento de Gadamer sobre a amizade difere do de Richard Rorty para quem são os traços de semelhança e identificação que permitem a experiência conjunta entre os indivíduos que se unem contra as experiências de humilhação e degradação humana, expandindo os seus laços de solidariedade de pequenas às grandes comunidades.
[7] GADAMER, H. G.  Friendship and Solidarity. Research in Phenemonology, Leiden, vol. 39, issue 1, 2009, p. 3-12.