segunda-feira, 2 de julho de 2012


Parte (3) 
 

Gadamer inicia sua fala sobre a solidariedade lembrando-nos que quando olhamos suas manifestações nota-se pelo menos de duas maneiras: às vezes declaramos que temos solidariedade ou às vezes sentimos a solidariedade. Experiências trágicas como a vivida por Gadamer e seus contemporâneos também possibilitam o desenvolvimento de uma forma de manifestação da solidariedade. Na guerra e nas experiências cruéis surgem atos e sentimentos de solidariedade. Mas o que nós queremos dizer com a palavra solidariedade, pergunta-se Gadamer. Da etimologia da palavra solidariedade, do latim solidum que também expressava o soldo (pagamento), Gadamer nos fala que a solidariedade é um valor, uma virtude, que conta por si só, que possui um valor intrínseco. Ela é genuína e expressa uma autentica e fiel inseparabilidade de ser o mesmo ainda que, quando em verdade, os interesses e as situações da vida nos tentem a abandonar a solidariedade e retroceder no bem estar do Outro.
Podemos notar que a solidariedade é aquela rede de confiança em que uma comunidade se estabelece quando aqueles critérios, análogos da amizade, são parte da experiência hermenêutica das pessoas no plano ético. A solidariedade não é a mesma virtude que a amizade, mas, também é desde sempre dada no plano da práxis e passa pelos elementos do estar-em-casa, do amor-próprio e do viver-com-outros. Sua diferença em relação à amizade, até aqui, está no apelo ao comum em situações de crise como forma de demonstrar que existem elementos compartilhados que podem ser trazidos à tona como forma de sanar as situações de crise. O recorrer à solidariedade é demonstrado por Gadamer quando ele exemplifica que quando se declara estar em solidariedade, seja livremente ou sob coação, há uma renúncia dos próprios interesses e preferências. Outro exemplo que Gadamer dá é a renuncia que se faz em defesa de uma ideia ou pensamento em nome da solidariedade[1].
Solidariedade é uma virtude, um valor, que preserva para Gadamer um duplo significado: ela pode ser vista em parte como benefício e em parte como privação. Essa ambiguidade preserva à solidariedade uma ampla possibilidade de ser trazida à consciência das pessoas nas suas interações. Como elemento em que as pessoas podem depositar sua confiança, a solidariedade é também um valor capaz de estabelecer a crítica e a correção da política, da eficácia sociológica das leis. A partir da solidariedade, Gadamer demonstra como as lutas partidárias pelo interesse autorreferencial dos partidos perde o sentido do que é realmente importante do ponto de vista ético. A política tem de se ligar ao sentido comunitário que é expresso por meio da autentica solidariedade.
A solidariedade também tem uma outra dimensão abordada pro Gadamer: a reivindicação por ela. Gadamer diz que a solidariedade real depende da declaração dos indivíduos e da ação deles por ela. Isso está em conformidade com o que pudemos ver sobre a ética e a práxis em Gadamer. Sendo a solidariedade uma virtude, a ação pela qual ela se desenvolve e se modifica demonstra que compreendê-la exige a sua aplicação, como nas demais experiências hermenêuticas. No entanto ela preserva sua peculiaridade e um traço bastante interessante que na análise da amizade Gadamer não havia tratado: a exigibilidade. Gadamer diz que a solidariedade é uma promessa de pagamento de amizade, que é limitada, como tudo o mais, assim como clama por uma completa dedicação de nossa boa vontade. Mas como assim uma promessa de pagamento de amizade? Não é a amizade um valor que não pode ser negociado tal qual um bem? Não vimos que a amizade não é sujeita ao decisionismo das pessoas?
A solidariedade é uma promessa de pagamento de amizade não porque a amizade é um negociável no mercado, mas porque as pessoas podem apelar por meio dela aos elementos constitutivos da amizade. A solidariedade passa a ser um valor que permite a ampliação do amor-próprio, da conciliação de si mesmo com o outro, a nosso ver, para além das barreiras impostas pelas limitações históricas. Isso não quer dizer que a solidariedade é ahistórica ou que não se dá no plano de experiência hermenêutica. Não se trata disso. Tal quais as demais experiências ela é situada e enraizada na temporalidade. O que queremos afirmar é que é possível apelar à solidariedade para que os elementos do estar-com-outros possam ser acessíveis até mesmo àqueles com que não estamos ou não compartilhamos de maneira direta um mesmo solo comum. Evidentemente que essa exigibilidade, possibilidade de se apelar à solidariedade e fazê-la concreta, por isso exigível do outro, só pode se dar quando os mesmos elementos da reconciliação de si no outro se desenvolvem. Porém, um pouco mais a frente, a solidariedade exige que essa reconciliação se manifeste no plano da ação concreta, como não poderia ser diferente, tendo como telos o bem-estar do outro. Essa ação, pensamos, vai um pouco mais além, pois ela se manifesta também no domínio do político, pois a exigibilidade da solidariedade, do cumprimento do pagamento da promessa, demanda que a comunidade política possa estar amparada por instituições capazes de fazê-las concretas. Podemos falar então que a solidariedade é uma virtude política que traz ao plano da comunidade uma conciliação dela mesma para os seus cidadãos.
Podemos pensar a solidariedade em analogia como a amizade, experiência do tu e problema hermenêutico na mesma linha da segunda parte de nosso trabalho.
(a)  Um primeiro nível de solidariedade: minimalista. No plano do político, os vínculos que os cidadãos estabelecem a partir da observação do comportamento da ação de uns dos outros para a consecução de seus interesses é tipicamente próprio de uma concepção liberal de política em que os cidadãos só conseguem se enxergar como agentes privados que perseguem seus próprios interesses. Esse tipo de experiência política ignora o Outro em várias de suas manifestações, não permite que os cidadãos possam se ver como uma comunidade que se autodetermina e corrompe tanto as bases materiais da vida em comum com as bases do autorrespeito. A comunidade não consegue, assim, perceber que as Instituições políticas podem fazer parte do seu autoconhecimento e aprendizado ao longo da história. A sua tradição política e jurídica é apenas o objeto para a consecução de interesses e práxis para o bem comum se dissipa na luta dos cidadãos atomizados e dos partidos que se tornam representações de lobbys.

(b)  O segundo nível da experiência da solidariedade poderia ser aquela em que os laços dos cidadãos são reforçados por uma consciência histórica que se manifesta na outorga total ao macro-sujeito Estado da determinação dos valores e condução da determinação da experiência do outro. Uma autodeterminação comunitária que se entenda suficientemente reflexiva ao ponto de suprimir a necessidade de autocompreensão dos cidadãos por meio da experiência hermenêutica passa a ser a encarnação política da consciência histórica. O resultado disso é a perda da autonomia e a supressão do Outro no plano da política. A este não é dada mais a chance de conciliar consigo mesmo. É a vontade da comunidade que se impõe a ele de forma a dissipar a legitimação de suas próprias pretensões. Não queremos parecer exagerados, mas as experiências totalitárias de Estado parecem ser o segundo nível dessa manifestação histórica da solidariedade. Num nível um pouco menos hard o Estado de bem-estar-social que se torna paternalista também pode deixar fluir essa solidariedade não autentica.

(c)   Por último, o nível da solidariedade autentica. A solidariedade autentica, entendemos, deve ser pensada por meio da consciência histórica efeitual. No âmbito do político, a solidariedade autentica permite que a experiência tu seja uma experiência de abertura ao Outro. Não se deve passar por cima de suas pretensões. Ela permite uma mútua abertura no plano da ética e do político, capazes de promover a compreensão mútua entre os cidadãos. O sentido de renuncia aos interesses e preferências tal qual é pensado no apelo à solidariedade guarda uma analogia com o reconhecimento de que devo estar disposto a deixar valer em mim algo contra mim, ainda que não haja nenhum outro que vá fazer valer por mim. Não queremos parecer exagerados, mas apenas o Estado democrático de direito é capaz de satisfazer no plano do político as exigências da experiência autentica da solidariedade. Uma política exercida de maneira participativa e suficientemente discursiva permite que o diálogo se estabeleça entre os cidadãos que poderão fazer suas exigências pelo cumprimento da promessa de pagamento de amizade por meio do diálogo. Por isso o Estado democrático de direito é importante, pois ele assegura, por meio da linguagem dos direitos, a autonomia dos cidadãos que podem tanto vir a falar (direitos de participação) como deixar falar (direitos subjetivos de ação). No plano do problema hermenêutico, o Estado democrático de direito está sempre aberto apreensão histórica de suas instituições. Por meio do direito, os atuais cidadãos e representantes podem sempre interpretar o legado deixado pelo conjunto das escolhas e decisões políticas que foram tomadas no passado. Eles podem avaliá-las e compreendê-las à luz de suas situações históricas atuais.

Em (c) podemos falar de uma solidariedade autentica, pois a autodeterminação democrática permite que a experiência hermenêutica não seja suprimida no âmbito da práxis dos cidadãos, pois ela respeita o Outro e a conciliação de si no outro. Por outro lado, em (c) fica em aberto sempre a possibilidade do sentido crítico que Gadamer quis dar a solidariedade quando disse que ela pode nos mostrar como a política se afasta do que é comum e sólido para as pessoas. No Estado democrático de direito, em suas atuais formas, as pessoas tem a chance de falar e ouvir de tal forma com que se possa demonstrar esse sentido de perda da ligação dos anseios da comunidade no plano do político. Esperamos não ter feito uma homologia demasiado grosseria. O que pretendemos foi apenas demonstrar que é possível pensar o político a partir da hermenêutica filosófica de Gadamer. Ao longo desse trabalho também passamos pela experiência hermenêutica de interpretar seus aclaramentos. Para nós parece que é bastante razoável pensar que as manifestações da experiência do tu e do problema hermenêutico da conciliação com a tradição também podem ser vistos, por analogia, aos problemas da ética e da política contemporâneas.


[1] GADAMER, H. G.  Friendship and Solidarity. Research in Phenemonology, Leiden, vol. 39, issue 1, 2009, p. 3-12. 

Parte (2)

            Em 1990 Gadamer chamou a atenção para o fato de que os conflitos armados entre os povos ainda era, e é, algo preocupante. Diante da multiplicidade de povos que querem se afirmar belicamente uns aos outros, Gadamer expressou uma preocupação com uma catástrofe de proporções globais. A técnica e o progresso científico só tornaram ainda mais devastadoras as possibilidades de um conflito armado entre partes que querem se afirmar umas perante as outras hierarquicamente. Como um intelectual e filósofo sério ele se perguntou sobre como é possível salvar a humanidade de si mesma e desenvolver um espírito comunitário, a solidariedade necessária para a vontade de viver e sobreviver[1]. Nessa parte queremos demonstrar como a amizade pode responder num primeiro nível a esse desafio de possibilitar a compreensão entre os indivíduos e suas comunidades.
            Gadamer inicia sua compreensão da amizade demonstrando que hoje ela se tornou um termo que muitas vezes pretende cobrir uma vasta gama de fenômenos. Na nossa tradição cultural a amizade é um tema que vem desde os gregos.  Mas o que é a verdadeira amizade? E o que significa ser amigo num mundo de instituições compartilhadas e mercados, num mundo de diversidade de conflitos e entendimentos que tornam a ação comunitária possível? Ironicamente Gadamer agradece ao modo como nossa sociedade está anonimamente organizada para nos desafiar uma pergunta instigante: quem é o vizinho ao lado com quem vivemos? Será que perdemos o sentido de uma pertença a uma comunidade em que seja importante conhecer o nome das pessoas, compartilhar hábitos, ter tranquilidade?[2]
            Para saber no que consiste a verdadeira amizade Gadamer vai descrevendo uma série de fenômenos sob aos quais as pessoas costumam atribuir amizade. Com a referência aos diálogos de Sócrates, Gadamer aponta que seus interlocutores não podem conhecer mais do que uma amizade infantil. A ilustração serve para demonstrar que não há uma relação de reciprocidade, mas apenas uma competição pela atenção de Sócrates que, aparentemente, se diverte com a disputa. A amizade então não pode ser fundada no interesse, tampouco na disputa por atenção ou em relações assimétricas entre os indivíduos[3]. Será então que são os laços em comum determinados por aquilo que nós identificamos no outro como sendo nosso o que constitui a amizade? A familiaridade dos traços em comum, os mesmos gostos, histórias, traços em comum. Ao contrário do que se poderia esperar, Gadamer expõe que são as diferenças, muito mais do que as semelhanças, os elementos que aparentemente constituem a amizade.
            A dificuldade em determinar o que é a amizade percorre a história das ideias na filosofia. Todavia, para Gadamer, a verdadeira amizade é algo escondido e não algo que se pode estar tão perto. A amizade não pode ser determinada pelo que é igualmente encontrado nas pessoas ou pela admiração recíproca pelas diferenças uns dos outros. Com diversos exemplos que ilustra a discussão, como as crianças em torno de Sócrates ou o diálogo deste com Alcebíades, Gadamer quer demonstrar que a amizade não é um conceito abstrato que pode ser dividido em várias subespécies. Tampouco a verdadeira amizade pode ser fruto dos desejos, felicidades, prazeres, vantagens, negócios, etc. A verdadeira amizade não é um fruto da identidade entre os indivíduos, tampouco de um cálculo racional de um agente prudente. Gadamer nos lembra que o sentido originário da palavra Oikeion, hoje base para a palavra economia, era o termo usado por Sócrates para designar uma forma mais autêntica de socialização entre os indivíduos “the house-like/domestic” ou “the home-like/native”. O que nos é familiar? Isso é o constitutivo da amizade que Gadamer busca[4].
            Gadamer nos convida a perguntar o que hoje poderia ser considerado como nosso Oikeion? O estar-em-casa (at-home) do qual não se pode falar, mas podemos perceber quando falamos de nossa casa ou da nossa terra natal. A verdadeira amizade parte como primeiro pressuposto desse sentido de familiaridade que é tão profundo: pensar numa pertença não problematizada a uma tradição, uma pertença de não estranhamento de uma total integridade com a comunidade. A terra-natal é algo imemorial, apesar de não sabermos o que é que pode estabelecer tais vínculos tão profundos entre as pessoas, mas a pertença a uma terra natal e origem comuns representa uma conexão que Gadamer considera como um tipo de comunidade, uma modalidade de solidariedade que não requer que eu declare ser solidário, pois ela já é solidária em si e para si mesma. Mas qual é o segredo ainda não revelado dessa conexão autentica e primordial? Até aqui, pelo menos, foi possível acompanhar Gadamer no sentido de que uma amizade autentica e uma solidariedade autentica partem desse primeiro sentido de pertença a um locus específico no tempo e no espaço, na concretude das relações mais primordiais que os indivíduos podem desenvolver sem necessariamente terem de problematizar ou exercer uma reflexão racional que sempre chega depois ou perde a imediatez da compreensão hermenêutica.
            Gadamer novamente retoma os gregos para responder a pergunta acima. Existe uma palavra que é de fundamental importância para a compreensão da amizade: Philautia, “amor-próprio”. No amor-próprio nós trazemos à tona a verdadeira condição para todos os possíveis laços com os outros e o comprometimento para com nós mesmos. Aqui o amor-próprio não é a preservação egoística de nós mesmos, não é apenas pensar em nós mesmos e não no que o outro é ou o que é para o outro. Não é essa concepção reducionista de amor-próprio que Gadamer está resgatando dos gregos. O que Gadamer quer trazer à nossa consciência é o amor-próprio que é autêntico porque ele nos reconcilia nos tornando um com nós mesmos. Se nós pretendemos ser amigos, se nós pretendemos poder amar ou desenvolver laços de solidariedade,  é preciso trazer à tona o amor-próprio que nos permite ser um com nós mesmos[5]. Os laços profundos são desenvolvidos quando podemos nos conciliar em nossa individualidade com o outro, a experiência da alteridade tem de necessariamente fazer com que eu possa me abrir hermeneuticamente.
            Com o estar-em-casa Gadamer, entendemos, quis demonstrar como os laços de amizade são situados historicamente, por isso a necessidade de nos lembrar do sentido de pertença a uma dada comunidade.  Já com o amor-próprio Gadamer está tentando nos dizer que apenas a experiência da alteridade em que o nosso eu se abre para o outro e se reconcilia consigo mesmo é possibilitador da fundação de laços profundos de amizade, amor e solidariedade. Com o estar-em-casa estamos situados, com o amor-próprio sabemos como desenvolvemos os laços. Agora, com a experiência de viver-em-conjunto no mesmo estar-em-casa nós podemos deixar acontecer o amor-próprio. Com o viver-em-conjunto é possível desenvolver o amor-próprio no sentido dado por Gadamer.
            Eis então que voltamos à pergunta sobre o que é a verdadeira amizade. Ao viver em conjunto nós partilhamos significados, nós construímos amizades. Mas, o que funda essas amizades no seu sentido mais primordial, não é a partilha de bens comuns ou laços comuns, ou traços e identidades comuns[6]. Não é a unidade do self constituída por meio da reunião de vários selfs porque eles compartilham e identificam uns nos outros as mesmas coisas. Antes, a reconciliação consigo mesmo que o amor-próprio traz só é possível na experiência da alteridade, na experiência com o outro. Gadamer nos diz que a verdadeira amizade deve existir em primeiro lugar e acima de tudo consigo mesmo. O que é existir para consigo mesmo? Significa que a amizade verdadeira exige que o amor-próprio possa se desenvolver e para que o amor-próprio possa se desenvolver a experiência do outro é primordial. Isso é necessário para que possamos ter verdadeiros laços para com os outros e com os outros.
            A reconciliação consigo mesmo é possível por meio da experiência da alteridade, por isso o Outro é fundamental para que laços genuínos de amizade possam ser criados. Os laços, vínculos ou ligações (Verbunden) com o Outro ou para com o Outro criam o sentido de obrigatório (Verbindliches). A experiência da alteridade é tão importante que Gadamer usa o exemplo da resistência dos gregos aos persas como uma guerra em prol da mantença dessa experiência de individualidade-alteridade contra um império que ameaçava suprimir como de forma niveladora as experiências de liberdade e modos de vida dos gregos[7]. Nesse exemplo vemos que o dialogo desenvolvido por Gadamer conosco mostra claramente que a estar-em-casa, amor-próprio e viver-em-conjunto são experiências hermenêuticas ao mesmo tempo situadas historicamente e, justamente por isso, universais, porque entanto experiências ocorrem para todos os seres que são necessariamente históricos. A violência e o domínio estão justamente na impossibilidade de se desenvolver esses elementos da vida concreta do ser que é situado na história e no mundo.       
            A verdadeira amizade é desenvolvida quando se está-com-outro. Ela permite que possamos nos conhecer a nós mesmos nos outros e que os outros se reconheçam eles mesmos em nós. A amizade é a virtude capaz de canalizar esse desenvolvimento hermenêutico da reconciliação do ser consigo mesmo no outro.  Por ser um desenvolvimento da experiência hermenêutica, a amizade não é possuída como um bem. Não se tem uma amizade. Ela não é disponível enquanto regra da tekne. A amizade tem de ser compreendida à luz do primado da ética tal como argumentamos na primeira parte desse trabalho. A verdadeira amizade é situada na práxis, na atuação da ação dos sujeitos que procuraram se reconciliar com a sua tradição e com os outros. Por isso Gadamer retoma o sentido dado por Aristóteles de amizade: Arete. A verdadeira amizade é best-ness, algo que não pode ser ampliada mais do que ela é, isso porque ela é dada na experiência hermenêutica dos indivíduos situados historicamente.
            Gadamer nos diz que significado profundo da amizade, que também é autoconhecimento, é que nunca se reconhece os preconceitos de seu próprio amor-próprio, mesmo quando se acredita ser um amigo correto do Outro. Por isso ele indaga sobre o que é ser verdadeiramente um amigo? Como compreender isso, uma vez a unidade consigo mesmo é também uma pré-condição para ser um amigo que é correto com o outro? No nosso entendimento essa é uma experiência histórica e prática.  A conciliação consigo mesmo é sempre um estar-com-outros que por sua vez estão-conosco, mas, tanto nós mesmos, quanto os outros, estamos em constante mudança da compreensão recíproca de nossos seres. Por isso é uma ilusão pensar que a conciliação consigo mesmo no outro é algo acabado ou dado uma única vez no tempo e no espaço da concretude histórica.
No plano da práxis, eu só posso me conciliar comigo mesmo e ser uma bom amigo ao mesmo tempo, pois minha ação está ligada ao fim que é estar com os Outros de tal forma que eu possa estar comigo mesmo. Gadamer nos fala então que a condição da conciliação e da correção de ser um amigo autêntico não tem como abrir mão da estrutura intersubjetiva da amizade. Por isso a amizade não é um bem que pode ser possuído. A estrutura da amizade é um estar-com-outros que pode ser identificado na variabilidade de fenômenos que conhecemos como amizade em nossas interações cotidianas. Com a ajuda da analogia desenvolvida pelos gregos, Gadamer passa a comparar as várias manifestações da amizade exemplificadas por ele mesmo ao longo de sua fala. Parece que seu intuito é mostrar como nas várias manifestações de amizade, mesmo aquela que não são autênticas no sentido mais rigoroso, estão presentes os elementos da estrutura fundamental de estar-com-outros.  
Antes de passar ao ultimo ponto de nosso trabalho, a solidariedade, gostaríamos apenas de propor aqui uma certa consideração que pretendemos investigar mais aprofundadamente. Na primeira parte do nosso trabalho destacamos como a ética é importante para Gadamer no sentido de possibilitar e experiência hermenêutica num nível mais fundamental. Por isso a compreensão de que o problema hermenêutico da conciliação com a tradição é antes de tudo um problema que tem de ser investigado a partir da aplicação. Em seguida foi retomado como o problema hermenêutico se desenvolve na experiência hermenêutica do tu, na qual Gadamer vê pelo menos três formas de manifestação. Nesse ponto podemos fazer nossa observação: cada uma das três etapas de experiência do tu, assim como sua compreensão análoga para a compreensão do problema hermenêutico, são, ceteris paribus, análogas a compreensão de Gadamer sobre a amizade.
(a)   A amizade autentica não pode ser fundada em traços comuns de identidade, compartilhados por conta de sua manifestação recorrente entre os indivíduos, porque ela só pode revelar aquele primeiro momento da experiência do tu que se baseia no conhecimento da regularidade das ações humanas como fator determinante da compreensão das relações humanas. Aqui a amizade se torna um objeto, perde o seu valor e passa a ser reificada tal qual se faz com a tradição quando se pretende pensá-la apenas do mesmo modo que as ciências naturais.

(b)  A amizade autentica não pode ser fundada unicamente no sentido de pertença a uma dada comunidade histórica concreta. A pertença a uma determinada terra-natal do qual nós desde já estamos inseridos e familiarizados sem a possibilidade de reconciliação de nós mesmos com nos outros, pela experiência da alteridade, nos torna de certa forma apenas influenciados pelos valores que são compartilhados pela comunidade sem que necessariamente haja uma abertura de nós mesmos. Essa forma de amizade, em que se opera um nivelamento, se dá quando o sentido de individualização se dissipa no macro-sujeito comunidade. No encontramos desde sempre em um at home, mas não podemos nos desligar do sentido de abertura proporcionado pelo amor-próprio e pelo viver-com-outros. Esse desenvolvimento não autentico da amizade se dá no mesmo sentido do nivelamento da tradição da consciência histórica que se apropria do passado esquecendo ela mesma de sua condição limitada, assim como das experiências de reconhecimento que perdem a imediaticidade da compreensão do outro por meio da hiper-reflexão que empreendem.

(c)   A amizade autentica só é possível quando são conciliadas as condições da terra-natal (situação histórica determinada), amor-próprio (reconciliar-se consigo mesmo no outro) e estar-com-outros (experiência que possibilita a reconciliação de si mesmo no outro).  Esse é a mesma modalidade de experiência com o tu que Gadamer desenvolve como a verdadeira experiência hermenêutica. A amizade autentica é no plano da ética a realização da consciência histórica efeitual que se dá na experiência do tu e da conciliação com a tradição. A amizade autentica é no plano da práxis uma abertura ao outro em que reconheço que devo estar disposto a deixar valer em mim algo contra mim, ainda que não haja nenhum outro que vá fazer valer contra mim. Esse é o sentido da conciliação consigo mesmo no outro. É poder permitir que meu ser possa coexistir com o ser dos outros porque eu pude entender como o ser dos outros o é e como eu posso vir a ser com eles.    
           



[1] GADAMER, H. G. La diversidade de las lenguas y la compreensión del mundo. IN Arte y verdade de la palabra. Traducción de José Francisco Zúñiga García.  Paidós: Barcelona, 1993, p. 111-112.
[2] GADAMER, H. G.  Friendship and Solidarity. Research in Phenemonology, Leiden, vol. 39, issue 1, 2009, p. 3-12.
[3] Id., ibidem.
[4] GADAMER, H. G. Friendship and Solidarity. Research in Phenemonology, Leiden, vol. 39, issue 1, 2009, p. 3-12.
[5] Id., ibidem.
[6] Nesse sentido, o pensamento de Gadamer sobre a amizade difere do de Richard Rorty para quem são os traços de semelhança e identificação que permitem a experiência conjunta entre os indivíduos que se unem contra as experiências de humilhação e degradação humana, expandindo os seus laços de solidariedade de pequenas às grandes comunidades.
[7] GADAMER, H. G.  Friendship and Solidarity. Research in Phenemonology, Leiden, vol. 39, issue 1, 2009, p. 3-12.

Apontamentos sobre a experiência do Outro, Amizade e Solidariedade em Gadamer.

Venho desenvolvendo um interesse por estudar a solidariedade. Surgiu a oportunidade de vê-la em Gadamer na disciplina do Prof. Roberto Wu. Ainda está em fase de desenvolvimento, mas publico aqui os apontamentos preliminares de um estudo que pretendo aprofundar.


Apontamentos sobre a experiência do Outro, amizade e solidariedade em H. G. Gadamer[1].
Davi José de Souza da Silva[2]

RESUMO: Pretendemos com o presente trabalho apresentar as principais nuances de como pensar a solidariedade a partir de H. G. Gadamer e sua hermenêutica filosófica. Para isso dividimos nosso trabalho em três partes. (1) No primeiro momento iremos explicitar o que Gadamer entende por ética e como esta está ligada a experiência hermenêutica do outro (tu) com intuito de destacar a importância da alteridade na compreensão prática. (2) Em seguida, iremos ver como a experiência do outro (tu) é ligada à amizade como uma experiência fenomenológica do partilhar. Esse ponto tem por objetivo explicitar que a experiência da alteridade preserva como ponto importante a mantença da diferença. (3) Por último, como pode ser compreendida a solidariedade a partir de Gadamer, assim como podem ser considerados seus reflexos no domínio do político.  

Palavras Chaves: solidariedade, amizade, ética, hermenêutica, compreensão.
           
            Discutir o que se pode compreender sobre solidariedade é uma proposta atual e importante para as pessoas e para os cidadãos. Em nossa época de comunicação midiática e fluxos de informações digitalizadas diminui o anonimato e aumenta a indiferença. Sabemos quem foram os responsáveis pelos últimos assaltos, homicídios ou subornos político, porém pouca ação se desdobra das preocupações éticas que muitas vezes sequer empreendemos nosso cotidiano. Talvez tenhamos perdido o sentido daquilo que é mais fundamental para ser compartilhado em uma comunidade e estejamos perdidos num processo de desencantamento em que a busca dos interesses e o individualismo prevalecem de uma forma patológica ultrapassando os âmbitos que lhes são próprios, corroendo outras esferas de convivência e relações humanas como a amizade, o amor e a solidariedade. Aparentemente, bate à porta a possibilidade de um processo de desintegração cada vez maior dos laços que outrora permitiram a formação das sociedades.
          
          Com o presente trabalho queremos resgatar uma possibilidade de reação a esses problemas seguindo os passos de H. G. Gadamer e sua hermenêutica filosófica. Como filosofo da práxis, Gadamer não se furtou a interpretar seu tempo para enfrentar problemas de uma época em que a responsabilidade se tornou anônima, conceito que atribui a seu predecessor em Heidelberg, Karl Jaspers. Para Gadamer este é

Um termo que, diante de seu tempo, está se tornando cada vez mais verdadeiro. Tornou-se tão diretamente cheio de verdade que hoje em dia existem clínicas onde o paciente já não tem um nome, mas recebe um número. Na verdade, a questão que devemos com toda a seriedade nos perguntar é como aquelas coisas que sustentam a felicidade humana podem ser desenvolvidas e preservadas nas novas formas de vida que surgem a partir da Revolução Industrial e suas consequências[3].
        Com o desenvolvimento técnico científico deflagrado desde Galileu somos levados a questionar junto com Gadamer que ganhos temos com tamanha disponibilidade técnica e instrumental.[4] A assimetria entre o desenvolvimento tecnológico e a diminuição da coesão social é para Gadamer um problema que se agudiza na invasão do discurso técnico científico sobre os elementos fundamentais vida social:
A tecnologização da natureza e do ambiente natural, com todos os seus efeitos de longo alcance, ergue-se sob a rubrica de racionalização, desmistificação, desmitologização, o desmantelamento de precipitada correspondências antropomórfica. Por fim, a viabilidade econômica, roda de novo equilíbrio do implacável processo de mudança em nosso século, torna-se cada vez mais uma forte força social. Tudo isso é característico da maturidade ou, se quiserem, da crise da nossa civilização, pois o século XX é o primeiro a ser determinado novamente de forma decisiva pela tecnologia, com o início da transferência de conhecimentos técnicos a partir do domínio das forças da natureza para a vida social[5].
       Diante desse quadro é que surge a importância de pensar a partir da hermenêutica filosófica a solidariedade. Embora não seja o objeto principal de Verdade e Método[6], é na opus magnum de Gadamer que estão os conceitos fundamentais para compreendê-la. Assim, (1) na primeira parte desse trabalho iremos explicitar o que Gadamer entende por ética e como esta está ligada a experiência hermenêutica do outro (tu) com intuito de destacar a importância da alteridade na compreensão prática. (2) Em seguida, iremos ver como a experiência do outro (tu) é ligada à amizade como um primeiro nível de experiência fenomenológica do partilhar. Esse ponto tem por objetivo explicitar que a experiência da alteridade preserva como ponto importante a mantença da diferença. (3) Por último, como pode ser compreendida a solidariedade a partir de Gadamer.


(1)   

            Se já pudemos destacar que Gadamer não deixou de pensar a aplicabilidade de sua hermenêutica filosófica aos problemas contemporâneos, Georgia Warnke destaca que o pensamento gadameriano é bastante rico e amplo para se pensar as questões éticas e políticas de nosso tempo, guardando até mesmo um potencial muito maior em termos democráticos e não autoritários do que outras visões por ela analisadas no seu artigo Hermeneutics, Ethics and Politics[7]. Nesse artigo nos interessa a reconstrução que ela faz da situação hermenêutica como ponto de partida para a experiência hermenêutica. Esta, por sua vez, revela que o entendimento é uma experiência intersubjetiva que necessariamente pressupõe o outro (tu). Queremos acompanhá-la nessas explicações para caracterizar bem o tipo específico de experiência que se pode desenvolver no plano da compreensão hermenêutica para, em seguida, comparar com a experiência da amizade e, ao final, com a solidariedade.
          A situação hermenêutica em Gadamer, segundo Georgia Warnke, acompanha o pensamento de Heidegger ao entender que os indivíduos estão desde já lançados na história de um quadro de estórias do qual não iniciamos e também não iremos terminar, porém temos de dar continuidade[8]. Para Gadamer, a situação hermenêutica é dialógica, pois interprete e o que se interpreta encontram um ao outro, sendo este encontro de ambos determinado pela finitude da experiência humana, que por sua vez também determina que nossas tentativas de nos ligarmos ao fluxo da consciência da história efetiva (Wirkungsgeschichte) é sempre incompleta[9]. No plano da ética, para que possamos agir temos de nos compreender como parte de uma história cujo entendimento implica em compreender quem nós somos e quem nós queremos ser. Nesse processo de entendimento, é importante saber que o nosso ser é determinado pelo fluxo da história que nos transmite no interior de uma tradição o qual pertencemos nossos pré-conceitos, cujo conjunto forma o ponto de partida para o entendimento[10].
         Essa forma de compreender necessária para agir é circular e conduz Gadamer, explica Georgia Warnke, à reformulação do círculo hermenêutico proposto por Schleiermacher. Gadamer entende que o texto fundamental que tem de ser compreendido são as narrativas em que nos encontramos. Os questionamentos acima feitos para nós mesmos no sentido de buscar a compreensão do nosso lugar histórico no mundo.  Somos seres históricos localizados em determinadas culturas, línguas, regiões, heranças culturais, etc. Essa temporalidade é que faz com que o círculo não se torne vicioso, pois quando queremos entender a nós mesmos inevitavelmente nós partidos da nossa posição atual na história que, por sua contingência, não será completa e precisará que outras pessoas possam dar continuidade às linhas de transmissão e compreensão da história[11].  
Uma vez que a compreensão que podemos ter é hermenêutica e se dá no curso da história, a ética e a política enquanto conhecimento prático também não pode abdicar do enraizamento histórico. Esse raciocínio conduz Gadamer a pensar uma filosófica prática que não seja desligada da práxis dos agentes, levando a Aristóteles, pois:
Se o próprio núcleo do problema hermenêutico é que a tradição como tal tem de ser entendida de uma maneira diferente, então – visto sob ponto de vista lógico – trata-se de uma relação entre o geral e o particular. Compreende é então um casão da aplicação de algo geral a uma situação concreta e particular. Com isso ganha especial relevância para nós a ética aristotélica, de que já mencionamos nas nossas considerações introdutórias à teoria das ciências do espírito. É verdade que Aristóteles não aborda o problema do circulo hermenêutico nem sua dimensão histórica, mas trata somente da apreciação correta do papel que a razão deve desempenhar na atuação ética. Mas é isso precisamente que nos interessa aqui, que ali trata-se de razão e de saber, que não estão separados do ser que deveio, mas que são determinados por este e que são determinantes para este ser[12].
            Gadamer se posiciona pela ética aristotélica pelo seu sentido prático estar ligado ao ser. Com ela fica estabelecida a distinção entre razão teórica e razão prática pensada na ação humana. O que nós podemos entender como bem no sentido teórico é algo completamente diferente do que podemos entender como correto a se fazer no sentido prático. A teoria ética passa então a ser uma teoria pragmática no sentido de ser voltada para a realização do bem numa situação concreta, dada, em que se vê o sujeito. O conhecimento prático é um conhecimento para a ação do sujeito e não um conhecimento sobre objetos que pode ser discernido a partir da observação, antes, ele exige engajamento, interação, uma prática intersubjetiva com o outro que se estabelece num nível muito mais concreto do que a especulação teórica[13]: Assim:
O conjunto da ética humana se distingue essencialmente da natureza através do fato de que nela não atuam simplesmente capacidades ou forças, mas pelo fato de que o homem vem a ser tal como veio a ser, somente através do que faz e de como se comporta, isto significa, porém: sendo assim, se comporta de uma maneira. Aristóteles opõe ethos à physis, como sendo um âmbito, no qual não é não seja comandado por regras, mas que não conhece as leis da natureza, a não ser a mutabilidade e regularidades limitadas das posturas humanas e de suas formas de comportamento[14].
            O conhecimento prático, ético, não é o conhecimento teórico. Ele exige uma prática em que as pessoas possam desenvolver sua consciência moral. Gadamer então retoma Aristóteles e a análise da phronesis para fazer a distinção entre saber apoiado na tekne e o saber ético. Diferentemente da tekne, o saber ético não pode ser aprendido nem esquecido, pois ele não é apropriado como se fosse uma coisa, tampouco é algo que pode ser eleito como um objetivo. Antes, acentua Gadamer, desde sempre nos encontramos em uma situação em que temos de atuar e, por conseguinte, temos de já sempre possuir e aplicar o saber ético. Muito menos do que regras, o saber prático é constituído de imagens que o homem forma sobre o que ele deve ser, sobre o justo ou injusto, sobre decência, coragem, dignidade, solidariedade, são imagens do plano simbólico que nos conduzem, que nos dão as diretrizes[15]. Ao saber prático então se colocam os mesmos fundamentos da compreensão hermenêutica, pois as imagens que recebemos sob as quais nos movemos na situação concreta são as imagens que nos são legadas pela tradição, assim como as escolhas que temos de fazer sob este quadro simbólico dependem da compreensão de nós mesmos, de nossos projetos de vida e de como nos relacionamos com os outros em nossa existência determinada historicamente.
            Georgia Warnke destaca pelo menos três aspectos na análise de Gadamer sobre a diferença entre o saber técnico e o saber ético. Conforme tratamos acima, o saber prático não é um bem que está à disposição dos sujeitos, nós não podemos escolher aplicá-lo, nós estamos sempre o exercendo por meio de nossas ações. Esta é a característica da não discricionariedade do saber ético que é constitutivo do sentido expresso acima de que o saber ético não é desprendido do ser que está sendo, mas, antes, determinado por ele. Na aplicação do saber ético sua determinação se dá na história que não se encerra com o sujeito finito, sendo a historicidade ao mesmo tempo a definidora da situação hermenêutica e o raio em que se pode atuar.[16]
            A segunda distinção levantada por Georgia Warnke é outra modalidade de não discricionariedade. Na primeira tratada acima, a não discricionariedade se dá no âmbito da escolha entre saber técnico e saber prático. Como somos seres históricos não temos como escolher entre usar ou não o saber prático, pois em cada ação que realizamos nos movemos diante das imagens de mundo que nos são legadas pela tradição e temos de fazer escolhas fundamentais sobre o projeto de nosso ser. Agora, essa segunda modalidade de não discricionariedade se refere ao modo como utilizamos o saber prático. Este sempre se na forma da aplicação de um problema de compreensão hermenêutica, de entendimento sobre nós mesmos, nosso passado e nossas escolhas sobre o futuro[17]. Na medida em que o saber prático é aplicado nossa compreensão do próprio saber prático é alterada por sua aplicação. Ao mesmo tempo em que ele só pode ser exercido pela aplicação ele se transforma na aplicação.  Essa transformação não se dá no âmbito da tekne.
Quando construo uma casa ou aprendo a dirigir um carro o faço por meio da aplicação de um saber técnico. Os imprevistos, as lições, a repetição, o exercício do artesanato ou da prática da direção poderão tornar a obra ou a perícia automobilística maior ou menor. Porém, o ideal de uma casa bem construída ou de um excelente piloto não será alterado. Nossa prática, no caso da tekne, apenas nos tornou mais habilidosos. No entanto, no saber prático o agir nunca é independente da ação em si, não sendo possível separar meios dos fins tal qual fazemos com o saber técnico. A aplicação do saber prático sempre envolve os meios e os fins. As virtudes e os fins em causa são parcialmente determinados pela ação que se desenvolve para alcançá-los. Como explica Georgia Warnke, a isso se associa que o saber prático é sempre uma aplicação de nosso entendimento sobre nós mesmos como seres virtuosos[18].
A importante relação entre meios e fins que se estabelece no plano do saber prático se dá por conta de duas conexões entrevistas por Aristóteles que são enfatizadas por Gadamer. Essas duas conexões, destacamos, são ligadas ao modo como ser se compreende no mundo levando em conta que a sua compreensão de si é sempre no âmbito de um entendimento concreto sobre como agir à luz dos elementos simbólicos que ele recebeu e visualiza na tradição. A primeira delas se refere a como o hábito e o caráter modelam os indivíduos. Ao contrário das ferramentas no saber da tekne as pessoas não estão disponíveis instrumentalmente. Antes elas podem fazer escolhas ao agir e agir pressupõe fazer escolhas dentre as escolhas que ela faz , está a pessoa que ela pretende ser determinada pelo caráter que pretende ter. O curso da ação que tomo é importante para a pessoa que pretendo me tornar. Já a segunda se refere à ligação que a virtude tem com o curso da ação, pois o que a virtude é depende das ações que a realizam[19].
            A terceira e ultima distinção feita por Gadamer com relação ao saber prático a partir de Aristóteles se refere à syneses, a relação que se estabelece ao se dar um conselho ético entre conselheiro e aconselhado. No domínio da tekne não é necessário estabelecer uma relação para dar um conselho. Já na no âmbito do saber prático é preciso se estabelecer uma relação de entendimento em que é necessário estar envolvido, preocupado e simpático ao outro. O conselho ético, diz Gadamer, exige o mesmo tipo de engajamento e interação na compreensão do problema que desenvolvemos como buscamos entendimento sobre nós mesmos. Só é possível dar conselhos se estamos diante de uma situação que é compreendida por nós como importante para as nossas próprias vidas e para o nosso auto-entendimento[20]. O conselho então tem a mesma estrutura que o próprio saber ético, como bem explicita Gerogia Warnke:
Nossa compreensão do que devemos fazer em qualquer situação particular não é o conhecimento objetivo de um observador, mas a compreensão engajada de alguém que deve agir. Tanto a ação ética e aconselhamento ético para outros envolvem aplicar o conhecimento ético já possuído por causa da prática, educação, e educação para situações novas e diferentes em que essa aplicação altera o conhecimento ético e o caráter ético que se tem e toma à frente em situações futuras de ação, que por sua vez são elas próprias parcialmente determinadas pelas ações presentes[21].
Essas mesmas considerações podem ser feitas no plano da comunidade política que também são determinadas historicamente e devem fazer escolhas sob o horizonte de uma tradição comum sobre os valores e normas que compreendem válidas e adequadas para si. Assim como se dá a compreensão dos indivíduos no circulo hermenêutico, as comunidades também empreendem o autoentendimento que parte da tradição e dá continuidade a ela sem necessariamente romper com ela ou deixar de apreendê-la criticamente. Nesse processo, além da temporalidade que determina a saída da circularidade do entendimento hermenêutico, há um outro elemento no pensamento de Gadamer que é importante para a experiência hermenêutica e para o presente trabalho: a experiência do outro (tu). 
            Segundo Gadamer, a experiência hermenêutica tem a ver com a tradição, sendo esta que deve chegar pela experiência. Porém, como explica, a tradição não é simplesmente um acontecer que se pode conhecer e dominar pela experiência, mas é linguagem, isto é, fala por si mesma como faz um tu[22].  Embora a tradição não confunda com o tu, Gadamer está querendo dizer que a nossa experiência de compreensão da tradição pode ser analisada a partir da experiência de compreensão do outro, uma vez que o interprete que compreende sua situação no mundo trava um diálogo com a tradição assim como com os demais interpretes com que ele convive numa mesma situação histórica. Assim, tanto tradição como o tu não são objetos, mas verdadeiros companheiros de comunicação ao qual todos estamos vinculados[23].  
            Gadamer perpassa pelo menos três formas de experiência do tu que são apropriadas pela experiência hermenêutica. A primeira delas é a experiência do tu que temos observando o comportamento dos outros. Ele entende que compreendemos o outro da mesma maneira que compreendemos qualquer processo típico dentro do nosso campo de experiência, isto é, podemos contar com o tu. Em que sentido? No sentido de que seu comportamento é avaliado por nós e nos serve muitas como meio para nossos fins, como faria qualquer outro meio.  Porém, este tipo de comportamento voltado para o tu tem apenas o sentido superficial da autorreferência e contradiz a determinação moral do homem. Do ponto de vista hermenêutico, essa compreensão do outro recai na ingenuidade de se poder determinar comportamentos regulares pelo meio do método das ciências naturais. Como consequência, essa apreensão do tu converte a tradição em objeto e pretende se confrontar com ela “livremente” achando que é possível livrar-se dos preconceitos enquanto condição predicativa da compreensão. O resultado dessa forma de experiência do tu é o nivelamento e miopia da experiência humana e hermenêutica.[24]  
            A segunda forma de experiência do tu consiste em reconhecê-lo como pessoa, porém mantendo a referência a si mesmo apesar de incluí-lo na experiência. Para Gadamer esta autorreferência procede da aparência dialética que a dialética da relação eu-tu carrega. Nesse tipo de relação opera-se uma reflexividade que suprime a imediaticidade da compreensão do tu, conduzindo a uma relação em que toda pretensão implica numa contrapretensão possibilitando que cada parte da relação possa saltar uma sobre a outra. Gadamer entende que este processo leva o indivíduo a querer conhecer por si mesmo a pretensão do outro, querendo, inclusive, entendê-lo melhor do que ele mesmo se entende. Com isso o tu perde a imediatez com que orienta suas pretensões a respeito de alguém[25]. Podemos dizer que aqui, se opera a perda da espontaneidade na compreensão em nome de uma reflexão sem fim que só acarreta um falso ônus cognitivo, pois não preciso de toda essa hiper-reflexão para compreender o tu, e um exercício da dominação, pois suprimo o outro quando quero entendê-lo a partir das minhas próprias referências[26].
            Na experiência hermenêutica essa apreensão do outro desemboca na consciência histórica. Gadamer explica que a consciência histórica tem conhecimento do outro e do passado em sua alteridade, tal qual como a compreensão do tu tem notícia do mesmo como pessoal. Apesar da consciência histórica não buscar a regularidade geral, a sua pretensão de reconhecimento reflexivo sem o outro se eleva por inteiro acima de seu próprio condicionamento e fica aprisionado na dialética por querer se tornar senhora do passado. A consciência histórica perde seu contato com a tradição por querer distanciar sua finitude da historia que lhe chega transmitida pela própria tradição. O abandono dos preconceitos como ponto de partida e confiança em procedimentos faz com que negue seu próprio condicionamento histórico. O resultado e perda da vinculatividade moral da reciprocidade, pois quem sai reflexivamente da relação vital com a tradição destrói o verdadeiro sentido dela[27].
            O nível autêntico mesmo em que se pode ter a experiência do tu e a relação com a tradição se dá quando se opera a abertura à tradição que possuir a consciência da história efeitual. Nas relações de alteridade o que importa é experimentar o outro realmente como o outro, explica Gadamer, não passar por alto sua pretensão e deixar-se falar algo por ele. Todavia, há outra dimensão dessa abertura, pois aquele que em geral se deixa dizer algo está aberto de maneira fundamental. Não basta apenas a abertura do outro, ambos tem de estar abertos ao diálogo para que exista um verdadeiro vínculo humano. A pertença recíproca só é possível quando sempre e ao mesmo tempo pode-se-ouvir-se-uns-aos-outros. Gadamer explica que, quando duas ou mais pessoas se compreendem isto não quer dizer que um compreende ao outro de cima para baixo, mas que um ouve ao outro em iguais condições de escuta. A abertura ao outro implica, pois, o reconhecimento de que devo estar disposto a deixar valer em mim algo contra mim, ainda que não haja nenhum outro que vá fazer valer contra mim.[28]
            Na experiência hermenêutica com tradição, a abertura nos mostra que eu tenho de deixar valer a tradição em suas próprias pretensões, e não no sentido de um mero reconhecimento com a alteridade do passado, mas na forma em que ela tenha algo a me dizer. Gadamer chama atenção que também isto requer uma forma fundamental de abertura. O que está aberto à tradição desta maneira vê que a consciência histórica não está realmente aberta, pois já tomou uma atitude niveladora ao ler o passado não permitindo que os seus próprios padrões de saber possam ser postos em questão. Ao contrário, a consciência da historia efeitual vai mais além uma vez que não pretende comparar e igualar o passado e a tradição. Agora, a tradição se converte em experiência ao mesmo tempo em que se mantém aberta à pretensão de verdade que vai ao encontro dela. A certeza não está mais no método, mas na disposição a estar em uma experiência que caracteriza o homem experimentado face ao que está preso dogmaticamente. A abertura ao outro permite que eu possa me abrir. A abertura à tradição permite que eu possa ampliar a tradição[29].
            No plano da ética, as relações entre os sujeitos determinadas pelo saber prático em contraposição ao saber teórico e a tekne passam a serem compreendidas por meio da experiência hermenêutica. A abertura ao outro e a tradição nos permite pensar que no âmbito da convivência entre os indivíduos e as comunidades pode se desenvolver uma experiência hermenêutica que pode ao mesmo tempo preservar as características de cada tradição e abri-las a um redimensionamento a partir da própria compreensão que cada tradição pode desenvolver de si quando com contato com as demais. No âmbito interno das comunidades é também possível pensar o desenvolvimento de laços de amizade e solidariedade como elementos capazes de preservar a coesão social porque possibilitam a experiência hermenêutica. Eis então que a amizade, conforme veremos abaixo, é por si só um bem que demanda por sua estrutura a compreensão hermenêutica.



[1] Trabalho apresentado como parte integrante da avaliação da disciplina Ontologia e Método III ministrada pelo Prof. Dr. Roberto Wu no Programa de Pós-graduação em Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, 1º semestre de 2012.
[2] Doutorando pelo Programa de Pós-graduação em Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Bolsista-CAPES. Atualmente desenvolvo projeto sobre A Legitimidade das Intervenções Humanitárias a partir de Rawls, Habermas e Höffe na linha de pesquisa Ética e Filosofia Política. Email para contato: davisilva.adv@gmail.com
[3] GADAMER, H. G. Friendship and Solidarity. Research in Phenemonology, Leiden, vol. 39, issue 1, 2009, p. 3-12.   
[4] Id., What is Practice? The Conditions of Social Reason. Reason in the Age of Science. Translated by Frederick G. Lawrence. MIT Press Publishing, 10th Edition, p. 71.
[5] Id., ibidem. p.72.
[6] Chris Lawn, por exemplo, chega a afirmar que “não parece haver uma única referência à noção de solidariedade em Verdade e Método”. Cf. LAWN, Chris. Compreender Gadamer. Tradução de Hélio Magri Filho Vozes: Petrópolis, 2007, p. 140.
[7] WARNKE, Georgia. Hermeneutics, Ethics and Politics. In: DOSTAL, ROBERT J. Cambridge Companion to Gadamer. Cambridge Press: Cambridge, 2002, p. 79.
[8] Id., ibidem, p. 79.
[9] LAWN, Chris; KEANE, Niall. The Gadamer Dictionary. Continuum International: London, 2011, p. 46.
[10] GADAMER, H. G. Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Vozes: Petrópolis, 4ª edição, 2002 p. 451.
[11] WARNKE, Georgia. Hermeneutics, Ethics and Politics. In: DOSTAL, ROBERT J. Cambridge Companion to Gadamer. Cambridge Press: Cambridge, 2002, p. 81.
[12] GADAMER, H. G. Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Vozes: Petrópolis, 4ª edição, 2002, p. 465.
[13]WARNKE, Georgia. Hermeneutics, Ethics and Politics. In: DOSTAL, ROBERT J. Cambridge Companion to Gadamer. Cambridge Press: Cambridge, 2002, p.82.
[14] GADAMER, H. G. Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Vozes: Petrópolis, 4ª edição, 2002, p. 466.
[15] Id., ibidem, p.472.
[16] WARNKE, Georgia. Hermeneutics, Ethics and Politics. In: DOSTAL, ROBERT J. Cambridge Companion to Gadamer. Cambridge Press: Cambridge, 2002, p. 84.
[17] Id., ibidem, p. 84.
[18] WARNKE, Georgia. Hermeneutics, Ethics and Politics. In: DOSTAL, ROBERT J. Cambridge Companion to Gadamer. Cambridge Press: Cambridge, 2002, p. 84.
[19] Id., ibidem, p. 85.
[20] Id., ibidem, p.86.
[21] WARNKE, Georgia. Hermeneutics, Ethics and Politics. In: DOSTAL, ROBERT J. Cambridge Companion to Gadamer. Cambridge Press: Cambridge, 2002, p.86.
[22] GADAMER, H. G. Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Vozes: Petrópolis, 4ª edição, 2002, p. 528.
[23] Id., ibidem, p. 528.
[24] GADAMER, H. G. Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Vozes: Petrópolis, 4ª edição, 2002, p. 529.
[25] Id., ibidem, p. 530.
[26] Id., ibidem, p. 531.
[27] GADAMER, H. G. Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Vozes: Petrópolis, 4ª edição, 2002, p. 532.
[28] Id., ibidem, p. 532.
[29] Id., ibidem, p.533.